terça-feira, 27 de dezembro de 2011

Café com estímulo

Para João, com quem dividiria minha cama.

Hoje foi meu primeiro dia de férias. A chuva não parou um minuto e a primeira frase que ouvi quando acordei foi "hoje tá pra você". Não sei se entendi, falei, é claro que estava pra mim, primeiro dia de descanso, tão cansada - mesmo quando ganhei um puta recesso ainda me faltavam alguns resultados, foi mesmo uma grande pressão, mas coube até uma bebedeira de vez em quando, você bem sabe, veja só se eu ia aguentar sem uns copos em volta de uma gente bonita. Então ela me olhou e disse "você não sabe do que gosta".
Ela falava da chuva. Merda. Esqueci que disse a ela que gosto de chuva, eu sempre esqueço dessas delimitações, porque alguns dias ensolarados são tão bonitos, e eu com essa mania de achar tudo muito bonito, puta que pariu, agora ela vai pensar que não tenho palavra. Foda-se. Talvez não seja da chuva que gosto. Talvez tenha sido só aquele dia chuvoso, quando saímos de roupas quentes e entrelaçamos as mãos sob a desculpa do frio. Isso. Talvez eu goste das mãos, sabe-se lá, das desculpas, do quente que o frio deixa aparecer e o calor afasta. Não tanto dessa água.
"Eu gostava quando disse, agora parece comum". Debrucei a garrafa de café na borda da xícara e, no silêncio, a enxurrada de insônia fazia coro com o barulho da chuva. Ela me olhava séria e a melhor forma de sustentar aquele olhar foi recusar o açucar. Eu não ia dar esse mole, melar meu café da manhã daquele jeito que faço quando ninguém vê.
"Quer dizer que você é disso?" Fiquei confusa. O café descia difícil, mas eu fazia força para adoçar gole a gole, com uma doçura que o orgulho guarda lá no fundo e você nem sabe, mas serve pra essas e outras - de açucar eu conheço.
Anote aí, meu querido: são açucarados também alguns teimosos. E porque o são, tão resistentes, enterram fundo esse sabor. O gosto que fica nessa teima você conhece; é o tempero desse doce que é velado e dá vontade de lamber. É o mesmo desejo que lembra: somos mais teimosos do que eles.
Pois bem, voltei à pergunta dela disfarçando as curvas desse passeio:
"Se sou disso, de beber café amargo?" Talvez ela não tenha visto que eu suprimi o açucar, resolvi sublinhar.
"Disso, de acordar achando comum, a chuva, o amor, o que era importante um dia".
"Eu não disse isso".
"Mas é assim, não é? Você se cansa fácil".
Ela arrumou o jornal nessa hora. Queria te dizer por qual motivo, mas não sei. Se foi para desviar o olhar e manter as mãos ocupadas, ela até conseguiu, porque eu esperei aquele barulho acabar pra dizer o que você já sabe:
"Eu me canso." Ganhei de volta um olhar sobressaltado, de lindas molduras arqueadas que aguardavam o complemento: "Mas não é fácil".
Ela parecia descrente: "Você esperou a chuva por semanas, fazia um calor infernal... eu não sei o que é fácil pra você".
Então contei a ela a história do cara da biblioteca, lembra dele? Eu sempre passava correndo, mas nutria pelo sujeito uma simpatia gratuita, dessas que me são tão raras que agarro. Sempre que tinha algum tempo, parava alguns minutos para conversar com ele, que, por sua vez, sempre que podia implicava com a minha pressa.
Um dia, me perguntou: você é uma pessoa paciente? Achei graça da pergunta, é possível que tenha franzido a testa antes de responder: sou disciplinada; tenho paciência quando preciso. Ou, gratuitamente, quando o caminho me dá prazer.
"Quer dizer que quando você espera de bom grado, tal qual suportou o calor pensando nos dias de chuva, é porque essa espera é prazerosa e, por vezes, ainda mais prazerosa que o objeto de desejo?"
Linda e perspicaz. Desconversei:
"Quer dizer que todo mundo dormiria em mais casas, se soubesse antes como são bonitas as perguntas de uma mulher pela manhã."
Droga, falei de novo. Falei de novo que acho bonito, esse senso estético é de foder, porque eu achei bonito mesmo - e por isso falei, oras - só que agora vou ter que pensar duas vezes antes de dizer por aí que gosto de dormir sozinha.
Completei:
"Quer dizer que é preciso estímulo; é o pescoço da vida. Por isso se espera, por isso se cansa, por isso se bebe café".
Em silêncio, ela sorriu; linda e perspicaz.
A chuva ainda caía com força, matando a sede daqueles que cansam.

O tal do orgulho hetero

e a quantidade de besteiras que se cospe por aí...

http://naotenhopreconceito.tumblr.com/post/7475690206/parem-de-causar-fdps-orgulho-hetero-mas#notes

(não tive saco pra descobrir como põe o link direto, então, se interessar o tumblr que tem uma ironia fina e não é piegas, seja legal com ele, copie e cole no navegador).

sexta-feira, 23 de dezembro de 2011

O que a língua faz com as pernas

três pares de pernas
perambulam
pelo quarto

é madrugada;
a noite chupa
o vento
geme
a luz da lua
aquece

os três pares de pernas
ainda perambulam
por um quarto
que flutua
agora
vê;

a 8 pés de altura
voa o quarto
sem parede!
sem janela!

olha,
como mexe;

esse quarto
sem tranca
sem sentinela
enlaça a trança
dessas pernas

num rasante,
por sobre uma viela
param os pares
quando ouvem a baderna:

"vê, como é farto!
são três pares de pernas
que perambulam
pelo quarto!"

"mas que quarto?" - pergunta o leitor

"que quarto flutua?"

"que quarto não tem parede?" - esbraveja, indignado

pois justamente a ele -
e a mais alguns,
que não saíram
das cavernas -

responde o povo
em coro:

"meu senhor,
o quarto era mais um par de pernas!"

domingo, 18 de dezembro de 2011

Humano, demasiadamente humano

Pois é, Drummond, o mundo é grande e cabe nessa janela sobre o mar.
o mundo é grande
e eu também canso.


"O amor deseja, o medo evita. Por causa disso não podemos ser amados e reverenciados pela mesma pessoa, não no mesmo período de tempo, pelo menos. Pois quem reverencia reconhece o poder, isto é, o teme: seu estado é de medo-respeito. Mas o amor não reconhece nenhum poder, nada que separe, distinga, sobreponha ou submeta. E, como ele não reverencia, pessoas ávidas de reverência resistem aberta ou secretamente a serem amadas."
(Friedrich Nietzsche, "Humano, demasiado humano", Cia de Letras, p. 289, aforismo 603, ano 2001, São Paulo)

ISSO SIM

_ Voltei.

_ Você fabricou a cerveja, né?

_ Não, é que passei no banheiro.

_ E não chama?

sexta-feira, 16 de dezembro de 2011

Dedilhando entrelinhas

só dedos
não são nada
mais que dedos
detidos
num continente de
corpo e delito

(dedos reclusos
não devoram
como um dedo
perito)

um bom dedo
começa na boca
e na voz
rouca
ao pé do ouvido

(um dedo só
não é dedo o bastante
se esquece de respirar)

o bom dedo
morde

o pescoço
distrito capital
nesse descaminho
é o endosso e o isqueiro
que inflama o olhar vizinho quando grita:

o bom dedo é um corpo inteiro

quarta-feira, 14 de dezembro de 2011

Cruzes credos

Um trio de marombeiros cantando a bíblia na rua do ouvidor. Horário do almoço, sol. Imagens difíceis de esquecer.

sábado, 3 de dezembro de 2011

Segredos de liquidificador

(1)

Fala de você.
Ou do meu sutiã.

(2)

O sutiã está aqui, dentro da sacola em que o coloquei. Imóvel e obediente, como é próprio dos sutiãs.

Eu, por minha vez, não sou imóvel, menos ainda obediente. Falo pelos cotovelos, durmo na hora errada, faço sexo de madrugada e tenho sono por todos os poros.

Tentando dar conta do mundo racional, aquele que exige provas, horários, entrada-saída, dias contados, horas infindas. Depois ensaio de férias, chatice de natal (ainda bem que tenho um monte de amigos comunistas que adoram criticar isso...me sinto melhor assim).

Agora correndo pra tomar banho/lavar cabelo/secar cabelo/ torcer pra não ter insônia às 2 da manhã, pois trabalho às 7.

E vc?

Saudade!

(3)

Eu tenho sexo pelos poros e sono pela madrugada, mas estou aqui - em
horas infindas - imóvel e obediente, como é próprio dos dias contados.

Falo por minha vez, às vezes na hora errada, mas tenho cotovelos
obedientes, que tentam dar conta do mundo racional. (Não doem).

Depois da chatice, ensaio de entradas-saídas, aquele que fala por
todos os poros e exige provas de horas infindas e sutiãs obedientes e
insônia depois e agora, correndo;

Torcer seu cabelo, pra não ter mais sutiã às 2 da manhã.

A saudade está aqui, dentro da sacola em que a coloquei.

quinta-feira, 1 de dezembro de 2011

Artilharia pesada para a hierarquização etário-intelectual

...: esse menino sabe o que da vida? tem quantos anos? 20? manda ele ficar quieto

...: é... mas ele estuda filosofia

...: ah tá... então deixa falar.

Ô sorte!

(descendo a escada, escuto o diálogo entre uma histérica e um sacana)

Ela, aos berros: Mas você é muito irritante! Muito chato! Vem cá: você tem namorada??
Ele: Três. Tá bom pra você?

sábado, 26 de novembro de 2011

domingo, 20 de novembro de 2011

Chega de fantasia

Acordou na quarta-feira com a última lembrança no pescoço. Deslizou a mão pelos cabelos, mexeu as pernas, afastou o lençol e sentou na cabeceira da cama, com a mão na testa. A cabeça, como doía: maldito uísque vagabundo.
No caminho para o espelho ainda ouvia o rock dos Mutantes, "veja como vem, veja bem..." e sentia estourar a cada passo a frase da noite: "não vá se perder por aí", os meninos avisaram.
Escolheu com firmeza a torneira de água fria e lavou o rosto, com a certeza de que precisava de mais do que um café para acordar, por hora.

Empacotaram os sonhos há quase um ano. Fazia um tempo frio no Rio de Janeiro e as chuvas, cada vez mais frequentes e torrenciais, levaram com a correnteza os pacotes de futuro que não cabiam mais na cama.

(continua)

segunda-feira, 14 de novembro de 2011

Ah, lumiar...

Um Dois, três. Verde. Rede. Rio. Nós.
Dois. Mutuca. Cubano. Roupa de anão. Mais um, dois.
Alambique. Melaço. Vovô com cajado. Dois. A capoerista.
Nós.

segunda-feira, 7 de novembro de 2011

Isto não é uma ervilha

Era uma ervilha bem verde no prato e tantos talheres em volta. Tinha garfo, faca, dentes, e uma ervilha no prato. O copo transbordava, havia também mais garrafas sobre a mesa e mais ainda guardadas no armário. O forno abrigava um banquete preparado com o mais precioso requinte, mas sua fome era de ervilha. De uma ervilha. Daquela ervilha verde musgo, já fria -ora, que diferença faria - cambaleante na porcelana que espelhava de tão clara.
Já havia gozado muito da infinitude daquele branco. Salivava ao lembrar daquelas tardes, quando dedicava o tempo que fosse a contemplar aquela ausência que se exprimia em porcelana.
Nunca viu nada mais livre. Conheceu a liberdade medindo seu reflexo no fundo do prato vazio. Apaixonou-se pelo paradoxo da brancura; reunião de todas as cores e desfile de cor nenhuma. Namorou a ausência de qualquer coisa que limitasse a possibilidade daquele prato, a não ser ela mesma.
Acordou ofegante no meio de uma madrugada e decidiu: não é um prato. Sabe-se lá o que viu naquela noite, pouco falava, pouco se sabe sobre o que fomentou esse seu comportamento. No entanto, é certo que falou com todas as letras, buscou a porcelana na cozinha e pendurou na parede do quarto. Ficou bonito. Mas não era um quadro.
Por vezes guardava no criado mudo, ao lado da cama. Gostava de acordar ao lado daquela liberdade, sentir o cheiro daquele ser que era incapaz de se auto-limitar. Era ela quem o fazia ser o que fosse.
Passou dias fugindo desse jogo de determinar. Na esperança de que ele fosse coisa nenhuma, maldizia toda a noite sua consciência feroz, devoradora de sujeitos, objetos, possibilidades.
Elegeu a ausência como fuga do cárcere da definição: que tudo faltasse àquele ex-prato, àquela coisa que era qualquer coisa agora.
Lugar certo já não tinha, aos poucos abandonou sua finalidade; no início ainda era uma interrogação, mas logo passou; despercebeu-se.
Dia a dia lapidou a alma na medida daquele nada. Incorporou a infinitude daquele ponto branco, até a tarde em que sentou à mesa e havia uma ervilha no prato. Parecia deliciosa e bela a imagem daquele verde no branco da porcelana, mas tão imperativa. Media o tamanho do incômodo; era um buraco na alma.
Observava curiosa a existência daquele caraço inesperado, atordoante. Em febre, devaneios ganham letras:

Isso não é uma ervilha. É uma paixão.

quarta-feira, 2 de novembro de 2011

Promessas cretinas

Tenho lembranças de ter prometido a você que escreveria um texto doce;
âmago da poesia clássica, segredo dos romances, bossa nova, fim de tarde,
olhar de criança; flores.
Quantos doces já atravessam os dias, quando arregala os olhos para os quadros da vida.

Não que devesse,
mas quantos textos doces já não te escrevi, querendo, sem querer, em silêncio, em olhar,
em palavras de afeto que explodem
descuidadas,
por entre as farpas que trocamos.

Farpas flamejantes, que inclinam o leitor desavisado a pensar:
"como machucam!",
mas que bobagem,
são tão pequenas farpinhas...,
não diga que minam sua armadura, beliscam seu coração.
Que empreendimento ofegante para tão delicado azedume.

Claro que é possível
que a pouca potência das farpas que trocamos more na espessura do orgulho;
grosso.
Ainda assim são pontiagudas, e espetam e acumulam o açucar no fundo do copo,
grosso.

Quando prometi que te escreveria um texto doce,
tive medo.
E porque ainda tenho, temperei essa ante-sala vestida de eu-lírico,
com raspas do chocolate amargo que mordi,
uma dose de pequenas mentiras,
carapuças sinceras, paradoxos, contradições
e o pulsar
desse seu sorriso
pintado de sarcasmo
mas
me leve a sério,
diga a ele
que me leve a sério.

ou que só me leve, esse sorriso
enquanto eu quero ir.

sexta-feira, 21 de outubro de 2011

Osso-aqui-não

... e quando fecha a tranca, na fuga do barulho que a cidade grita por todos os cantos carros vendedores ambulantes ambulâncias ambivalências que piscam no asfalto, não cala o suspiro que faz sua boca, dormindo em mim.
Ela é linda enquanto dorme e - silêncio - olha só como acorda agora e sorri, desconfiada, assim que ouve o elogio.
Eu cá comigo mal consigo dormir com sua boca aqui dentro, mas tampouco se estivesse fora; ela toda me desperta.

Olho de novo: é incrível como vocês se parecem. Não, ela é você inteira, essa boca, em metonímia. E olha os lábios, como são bonitos. (é a expressão harmônica dos contrários: tão vermelhos, mas delicados. macios, mas precisos, firmes. o sorriso não extrapola e aparece tímido, mas delator)
Boca, sempre achei curioso o tom de cor que vocês têm. Por vezes, tenho a absoluta certeza de que não poderia ser outro, de jeito nenhum. Imagine só bocas azuis, quem sabe cinzas ou alaranjadas.
Não, não, bocas têm a cor que precisam.
E a textura, há que se falar da textura: é mesmo incrível que o corpo tenha dito: "osso aqui não, mas almofadas".

aiai, tudo parece num lugar tão certo quando se fala delas...; o que afinal faz sua boca dentro da minha cabeça?

sexta-feira, 14 de outubro de 2011

Que sejam mais tristes, pelo bem dos maus

um bom poeta ruim
não vale nada
até encontrar
um leitor doído

coração na ratoeira
lê poesia
de segunda
feira
e gosta.
faça um favor pro poema:
machuque um pouquinho
essa geleira, sim?

quarta-feira, 12 de outubro de 2011

Quando o poema fala

conversas mal coaguladas
pulsam na palma da mão
palavras transparentes
transplantadas
ainda quentes
sangram
a palidez do papel:
vida nova em folha
desenha segredos
com letras de forma

domingo, 9 de outubro de 2011

Ame-o e deixe-o

_ Eu precisei deixá-la ir.

_ Mas por quê??

_ Porque eu a amo.






(A Bela e a Fera)

segunda-feira, 3 de outubro de 2011

Das dificuldades da doçura - Parte I

_ Sinto sua falta, vez ou outra.

_ Recíproco.

_ Ah é? Por quê?

_ ... Porque você é uma boa companhia e diz coisas nas quais fico pensando quando você vai embora.

_ Entendo. Sendo assim, posso te indicar alguns livros que produzem o mesmo efeito e param de falar de maneira mais fácil.

quinta-feira, 29 de setembro de 2011

Budweiser no Brasil



Um ótimo motivo pra gente tomar uma cerveja.

domingo, 25 de setembro de 2011

Bukowski na rede de saquarema

CONFISSÃO
(Bukowski)

esperando pela morte
como um gato
que vai pular
na cama
sinto muita pena de
minha mulher
ela vai ver este
corpo
rijo e
branco
vai sacudi-lo talvez
sacudi-lo de novo:
"Hank!"
e Hank não vai responder
não é minha morte que me
preocupa, é minha mulher
deixada sozinha com este monte
de coisa
nenhuma.
no entanto
eu quero que ela
saiba
que dormir todas as noites
a seu lado
e mesmo as
discussões mais banais
eram coisas
realmente esplêndidas
e as palavras
difíceis
que sempre tive medo de
dizer
podem agora ser ditas:
eu te amo

quinta-feira, 22 de setembro de 2011

EM OFF

Hoje fiquei impressionada com a intensidade do relato de várias professoras primárias sobre a experiência de incorporação da reflexão crítica (chamada no grupo de filosófica) no cotidiano escolar de crianças.
Falei: me parece que vocês coordenam a experiência, objetivamente, mas também participam de outra experiência subjetiva, ao mesmo tempo. Difícil dissociar.
Uma delas disse, em seguida, frases que só colaboraram para que eu continuasse a pensar que essa relação de provocação, fomentação de conhecimento e crítica, é FÍSICA.
Ao final da sua fala, uma das professoras falou sobre a mudança de comportamento das crianças e carimbou uma imagem em mim: o aluno-problema, desinteressado, meses após participar das tais "experiências", que flertam com a Filosofia, batia na cabeça de maneira grave e dizia: "deixa eu pensar, peraí. Espera, eu preciso pensar."

Enquanto repetia essas frases e imitava a expressão do menino, juro que ela chorou. Agora à noite eu só preciso de uma bebida tão forte quanto essa cena.

segunda-feira, 19 de setembro de 2011

Design

meio dia
é hora dos olhos
almoçarem
corpinhos desfilando
mas tem muita roupa
no menú
tem
terno
meia
calça
jeans
rasgado
eu até gosto
mas é muita roupa

bonito é ver
roupa com vontade
própria
você sabe como é
você tem dessas
põe a calça
ela aperta
você tira
já pensando
em emagrecer
mas é mentira
e ninguém desconfia:
a calça aperta
pra você
ceder
certo dia
eu vou ser
seu vestido
baby
já que é muita
roupa
então
põe a cinta
liga também
baby

já que é muita roupa
roupa,
melhor sem

quinta-feira, 15 de setembro de 2011

P de perdeu, percebe?

Perdeu um amor e comprou o jornal. Pagou com duas moedas e pediu o troco. Procurou o isqueiro no bolso esquerdo da calça, onde sempre estava. Problema: esqueceu com a primeira com quem trepou pra esquecer o amor que partiu. Perdeu duas vezes.
Pediu fogo ao pedestre que fumava na marquise daquela padaria onde comprava pão enquanto o amor dormia. "Pode ficar com ele", o estranho disse, "Parece que você precisa mais do que eu." Precisava. Poder acender o próprio cigarro e poupar pedidos era exatamente o luxo que pedia naquela tarde pálida.
Perdeu um amor, comprou o jornal e sentou numa esquina. Pousou as notícias no banco do boteco: mais miséria em papel de miséria. Porca essa primeira página: pobres, programas de governo, presídios, presidência. Predisposição zero. Pensou nela. Pensou no peso do corpo dela. Pensou em saudade; não era aquilo? Pensou que se saudade não fosse aquilo não era mais nada. Passou a mão pelo rosto, como quem prepara o terreno à espera da chuva, mas ela não veio. Pior, tanto pior. Pobres desses que têm medo de chover.
Perdeu um amor, comprou o jornal, sentou numa esquina, pediu um café. Parou ali. "Pra viagem?", a atendente perguntou. Piscou e fez que sim.

Deixou seu amor de gorjeta e partiu; pra viagem.

quinta-feira, 8 de setembro de 2011

Pesos e medidas

você não quer mais
eu não quero mais
mas foi assim:
sem mais nem menos
mas foi assim:
muito

terça-feira, 6 de setembro de 2011

Nietzsche para estressados

Estava numa livraria ontem e, logo quando decidi pedir ajuda ao atendente, um sujeito grandalhão, mas com semblante apreensivo e, sou até capaz de dizer, meigo, foi mais rápido que eu perguntando afobado:

_ Você tem aí alguma coisa pra estresse?

O vendedor - devia ser novo na loja - pareceu muito desconfortável com aquela pergunta, que mais parecia uma confissão:

_ Olha, a gente tem esse aqui ó: "Nietzsche para estressados".

A imagem do Nietzsche, filósofo ácido, num contexto terapêutico arrancou de mim - que acompanhava o diálogo, à espera do vendedor - uma sonora gargalhada.
O grandalhão não pareceu convencido e foi investigar a sugestão, com ar desconfiado e sempre aquele semblante dolorido. Eu, ocupei o atendente com alguns autores que precisei soletrar e, por algum tempo, esqueci do grandalhão estressado.
Quando fui embora, ele ainda estava lá, com uma mão segurando Nietzche e a outra mergulhada numa prateleira que carregava uma placa amarela gritando: "AUTO-AJUDA".
Passei por ele morrendo de vontade de sussurrar no ouvido, baixinho, de modo que o sujeito não soubesse se ouviu de mim ou da própria consciência:

_ Auto-ajuda é masturbação, babe.

Cá entre nós

Invejo a sua flexibilidade. Eu juro que queria transcrever nosso diálogo de ontem, porque eu achei sua fala de uma liberdade invejável e esse é um dos motivos que me faz te ligar, volta e meia. Gosto também porque você fala baixo e sabe ouvir e sabe falar também. Gosto da ideia de sair com você num dia frio e aquela blusa de gola alta preta, que vai ficar um charme. Mas é que, você sabe, P., alguns caminhos são delicados, têm arame farpado, muro com choque e aquele negócio todo que faz da travessia algo difícil.
... "Ai ai essas mulheres indomináveis que me deixam sempre querendo mais", você escreveu. Depois falou de desejo e eu pensei: se todos os meus desejos fossem satisfeitos, eu pulava.

(Pena que não vale transcrever aquele diálogo. Mas juro que vou guardar e contar qualquer dia, quem sabe, pro primeiro missionário da Assembléia de Deus que me parar na rua).

segunda-feira, 29 de agosto de 2011

Calor agosto

hoje fazia um calor desgraçado nessa cidade, calor do caralho mesmo, daqueles que pipocam, que parecem fritar o asfalto e parecem agitar todas as pernas, as pessoas, parecem que vão fazer o centro da cidade explodir. e aí eu tinha que fazer um monte de coisas no centro da cidade porque, você sabe, segunda-feira é o meu dia de ir ao centro e eu prefiro fazer isso quando o dia é cinza. eu gosto de dias cinzas porque eles não esperam nada. um calor como esse parece sempre esperar alguma conversa sobre o quanto está quente ou que você ponha um biquini, deixe de ser preguiçosa e vá ler na praia. em dias cinzas, quando passa alguém fumando você acha bonito, você até fuma junto, porque esses dias te pedem um pouco de fogo. dias quentes como os de hoje já têm fogo demais. mas aí eu vi um bonitão de terno passando naquele amarelo todo que era o sol que fez mais cedo e pensei "cara, não sei como ele consegue fumar nesse calor". nem sombra está, veja só, e eu devo ter olhado demais, porque ele piscou e ofereceu um cigarro e eu até acompanharia se tivesse cinza, mas era meio dia e eu disse não, esse tempo já me traga. aí eu queria ir à pé, porque sempre há muito o que pensar, só que eu peguei um ônibus. não consegui sombra e fui fritando, vendo todo mundo muito suado, algumas calças puxadas pra cima, num improviso provinciano corajoso, desses que a gente inveja. quando já quase descia, eu vi algo muito azul entrando pela porta do meio - sim, há portas do meio em alguns poucos ônibus de agora. eles enfiam por ali os cadeirantes que esperam horas ao dia por um transporte desses para serem levados pra vida - aí, como eu disse pra você, vi alguém muito azul entrar no inferno sem ar condicionado onde eu estava. era um sujeito negro, bem negro, e tinha uma barba rala branca. ele vestia um uniforme cheio de picolés e eu olhei pra ele e tive vontade de comer a camisa dele, verdade. no lugar reservado para cadeira de rodas, ele deixou uma caixa enorme que carregava junto, toda azul também e mais cheia de picolés ainda. eram de todas as cores que você pode imaginar. então ele se sentou de lado para a janela e fazia muito sol de novo. debruçou os dois braços na caixa gelada e ficou ali, numa elegância só. quando chegou o meu ponto, eu saí de lá de trás, onde eu estava e via de canto de olho, desse jeito mesmo que a gente observa quando não quer que o olho seja visto. atravessei o corredor do ônibus, em meio a algumas daquelas crianças que vivem a eternos 40 graus e têm sempre bichinhos comichando o bumbum. passei por esse mar saltitante que é o fluxo da vida infantil e parei no azul, dessa vez ao lado dele. o sol denunciava as marcas de suas mãos, muito negras, marcas de quem acordou cedo pra ver alguém sorrir. fiquei olhando pra ele por algum tempo e não sei o que deteve mais o meu olhar: se foram as feridas de alguém que vende picolé pra se aquecer quando esfria. se foi o olhar daquele homem azul, fitando a janela, olhando sério a calçada passar. se foi o passado gelado dele, que o sol clareou bem ali na minha frente.

sábado, 27 de agosto de 2011

Rastros de agosto

você me voltou no fim de agosto, esse mês de gosto azedo e travessia caiofernandiana:
há que ter paciência e fé, ele disse. voltou em meio a outras angústias, dessas poucas que não levam o carimbo do seu nome nas entrelinhas: como-amo-essas-angústias-que-não-te-pertencem. detesto sentir seu cheiro em quase tudo o que vivi depois do seu pescoço. quero encontrar dores que não são suas, marcas que você não me fez, segredos que não te contei. quero esquecer nossos planos, enterrar nossos futuros, ouvir nossa música (sim, temos músicas) sem pesar (só-que-ainda-pesa).
difícil seguir sozinha o caminho traçado a torto por duas mãos canhotas, mas chove, a terra renova e o dia é lindo pra germinar.

sexta-feira, 26 de agosto de 2011

É dessas

Mosqueta, vi sua silhueta num livro de Baudelaire. Segue o quadro:

O desejo de pintar

Infeliz, talvez, seja o homem, mas feliz é o artista a quem o desejo dilacera!
Fico louco de vontade de pintar aquela que me aparece tão raramente e foge tão depressa quanto uma coisa bela inesquecível, atrás do viajante levado pela noite. E já faz tempo que ela desapareceu!
Ela é bela e, mais que bela, é surpreendente. Nela o negror é abundante: e tudo o que ela inspira é noturno e profundo. Seus olhos são duas cavernas onde cintila, vagamente, o mistério, e seu olhar ilumina como um relâmpago; é uma explosão nas trevas.
Eu a compararia a um sol negro, se se pudesse conceber um astro negro vertendo luz e felicidade. Mas ela faz mais facilmente pensar na lua, que, sem dúvida, a marcou com sua terrível influência; não a lua branca dos idílios, que parece uma fria noiva, mas a lua sinistra e embriagada, suspensa ao fundo duma noite tempestuosa, empurrada pelas nuvens que correm; não a lua pacífica e discreta que visita o sono dos homens puros; mas a lua arrancada do céu, vencida e revoltada, que as Feiticeiras tessalianas constrangem duramente a dançar sobre a relva aterrorizada!
Em sua pequena fronte habitam a tenaz vontade e o amor à presa. Entretanto, sob esse aspecto inquietante, onde as narinas móveis aspiram o desconhecido e o impossível, brilha, com inexprimível graça, o riso de uma grande boca vermelha e branca e deliciosa que faz sonhar o milagre de uma soberba flor que desabrocha em um terreno vulcânico.
Há mulheres que inspiram o desejo de vencê-las e de divertir-se com elas, mas essa dá vontade de morrer lentamente sob seu olhar.


(pequenos poemas em prosa)

domingo, 21 de agosto de 2011

Acachapante

M: bom, discorria sobre a importância das primeiras aulas que tive
ou, de como a primeira aula é um fator determinante em minha disposição à uma disciplina
a perplexidade e encantamento que tem surgido desse primeiro contato
(fora Lógica, rs)
pq aquilo não é pra mim, definitivamente.

T: rs, concordo
e acho que, precisamente esse termo que vc empregou
"perplexidade"
reflete talvez o q os gregos sentiram
diante da mesma descoberta

M: gata, vc não tem noção do que foi a minha primeira aula no curso, eu nem dormi a noite

T:haha, intenso...

M: fiquei atravessada por essas sensações, e "precisei" escrever uma carta na manhã seguinte
mas tb foi covardia
pq a primeira aula que tive foi de Filosofia e Literatura
e daí o cara 'abriu' a aula com um fragmento da Clarice, ACACHAPANTE.
eu vou te mandar depois

T: nussss
manda por agora... não tem por aí?

M: tenho
leia, e depois discutimos as impressões

Clarice:

----------------estou procurando, estou procurando. Estou tentando entender. Tentando dar a alguém o que vivi e não sei a quem, mas não quero ficar com o que vivi. Não sei o que fazer do que vivi, tenho medo dessa desorganização profunda. Não confio no que me aconteceu. Aconteceu-me alguma coisa que eu, pelo fato de não a saber como viver, vivi uma outra? A isso quereria chamar desorganização, e teria a segurança de me aventurar, porque saberia depois para onde voltar: para a organização anterior. A isso prefiro chamar desorganização pois não quero me confirmar no que vivi - na confirmação de mim eu perderia o mundo como eu o tinha, e sei que não tenho capacidade para outro.

Se eu me confirmar e me considerar verdadeira, estarei perdida porque não saberei onde engastar meu novo modo de ser - se eu for adiante nas minhas visões fragmentárias, o mundo inteiro terá que se transformar para eu caber nele. Perdi alguma coisa que me era essencial, e que já não me é mais. Não me é necessária, assim como se eu tivesse perdido uma terceira perna que até então me impossibilitava de andar mas que fazia de mim um tripé estável. Essa terceira perna eu perdi. E voltei a ser uma pessoa que nunca fui. Voltei a ter o que nunca tive: apenas as duas pernas. Sei que somente com duas pernas é que posso caminhar. Mas a ausência inútil da terceira me faz falta e me assusta, era ela que fazia de mim uma coisa encontrável por mim mesma, e sem sequer precisar me procurar.

Estou desorganizada porque perdi o que não precisava? Nesta minha nova covardia - a covardia é o que de mais novo já me aconteceu, é a minha maior aventura, essa minha covardia é um campo tão amplo que só a grande coragem me leva a aceitá-la -, na minha nova covardia, que é como acordar de manhã na casa de um estrangeiro, não sei se terei coragem de simplesmente ir.

É difícil perder-se. É tão difícil que provavelmente arrumarei depressa um modo de me achar, mesmo que achar-me seja de novo a mentira de que vivo. Até agora achar-me era já ter uma idéia de pessoa e nela me engastar: nessa pessoa organizada eu me encarnava, e nem mesmo sentia o grande esforço de construção que era viver. A idéia que eu fazia de pessoa vinha de minha terceira perna, daquela que me plantava no chão. Mas e agora? estarei mais livre?

Não. Sei que ainda não estou sentindo livremente, que de novo penso porque tenho por objetivo achar - e que por segurança chamarei de achar o momento em que encontrar um meio de saída. Por que não tenho coragem de apenas achar um meio de entrada? Oh, sei que entrei, sim. Mas assustei-me porque não sei para onde dá essa entrada. E nunca antes eu me havia deixado levar, a menos que soubesse para o quê.

Ontem, no entanto, perdi durante horas e horas a minha montagem humana. Se tiver coragem, eu me deixarei continuar perdida. Mas tenho medo do que é novo e tenho medo de viver o que não entendo - quero sempre ter a garantia de pelo menos estar pensando que entendo, não sei me entregar à desorientação. Como é que se explica que o meu maior medo seja exatamente em relação: a ser? e no entanto não há outro caminho. Como se explica que o meu maior medo seja exatamente o de ir vivendo o que for sendo? como é que se explica que eu não tolere ver, só porque a vida não é o que eu pensava e sim outra - como se antes eu tivesse sabido o que era! Por que é que ver é uma tal desorganização?

É uma desilusão. Mas desilusão de quê? se, sem ao menos sentir, eu mal devia estar tolerando minha organização apenas construída? Talvez desilusão seja o medo de não pertencer mais a um sistema. No entanto se deveria dizer assim: ele está muito feliz porque finalmente foi desiludido.

haha

segunda-feira, 15 de agosto de 2011

Querido papai

passei o dia a comandar uma escavação
por todas as entradas minhas:
marcas, linhas, vãos,
e até os cantos que calo
em busca de algumas palavras
que pudesse dizer a esse homem
cujo aposto pode ser
"meu pai"

eu juro que queria ter
um rancor qualquer
e lágrimas
de uma tristeza que te segurasse pelos pés
quando estivesse quase dentro
do meu poço da indiferença.

nunca te falei,
mas rego esse poço todo o dia
toda a vez que encontro
uma existência de padaria
e você nunca viu a cara que faço
quando falam sobre o tempo na fila do pão
porque não sabem nada sobre o silêncio

eles falam
e você só quer tomar seu café
e ver o tempo passar
na borda da xícara que esvazia.
então respira
e joga a fila inteira,
de um golpe só,
lá no fundo do poço da indiferença.

imagina você lá, pai
nadando em meio a vários estranhos
absolutamente desinteressantes
que formariam grupinhos
e cochichariam:
"Parece que ela jogou o pai no poço" - diria um.

então eu te esqueceria a cada dia
porque a indiferença é o hall do esquecimento
e você morreria sempre e mais
entre cônegos, credores , coronéis
e toda essa gente
que não cheira nem fode
e não faz diferença
quando respira na fila do pão.

mas você,
você não, você foi intensamente covarde
e os intensos nunca caem no poço, pai

essa sua falta era real, era você
era presença tua
e eu não sei mais qual é
o barulho dos seus sapatos chegando em casa
porque só te conheço pela ausência

o que encontrei em mim
pra te dizer hoje
é que você é um grande sacana, meu caro
mas eu tô me fodendo, pai
e te agradeço
sincera
e calorosamente
por ter me gozado.

sábado, 13 de agosto de 2011

Insônia

"Olha, eu estou te escrevendo só pra dizer que se você tivesse telefonado hoje eu ia dizer tanta, mas tanta coisa. Talvez mesmo conseguisse dizer tudo aquilo que escondo desde o começo, um pouco por timidez, por vergonha, por falta de oportunidade, mas principalmente porque todos me dizem que sou demais precipitado, que coloco em palavras todo o meu processo mental (processo mental: é exatamente assim que eles dizem, e eu acho engraçado) e que isso assusta as pessoas, e que é preciso disfarçar, jogar, esconder, mentir. Eu não queria que fosse assim. Eu queria que tudo fosse muito mais limpo e muito mais claro, mas eles não me deixam, você não me deixa"










"A vida é agora, aprende. Ainda outra vez tocarão teus seios, lamberão teus pêlos, provarão teus gostos. E outra mais, outra vez ainda. Até esqueceres faces, nomes, cheiros. Serão tantos. O pó se acumula todos os dias sobre as emoções"










Caio F.

sexta-feira, 29 de julho de 2011

Descongelando o passado

Brincando de continuar o conto "Venha ver o pôr-do-Sol", da Lygia Fagundes Teles:

E Ricardo desceu a ladeira, como quem deixa um pedaço de si lá em cima. Um pedaço podre, rejeitado. Um pedaço que, apesar de não lhe servir mais, seu corpo insistia em regenerar.
Mas essa era a sua vez de rejeitar, de fazer sofrer. E assim seguiu, vendo o morro crescer sobre suas costas aliviadas, e ao olhar para trás, contemplava cada paralelepípedo lavado pelo orgulho que pingava no chão. Lá havia brilho. E pela primeira vez, depois de anos, sentiu-se brilhante de novo.
Num último gesto, movido pelo entusiasmo, Ricardo levou a mão ao bolso à procura da chave que acabara de arrancar bruscamente da fechadura. Desejava brincar com a sua mais secreta comparsa, e acariciá-la ao mesmo tempo em que esta percorria seus dedos, ora girando, ora mudando de mão. Certamente faria isso, se algo encontrasse sob sua roupa.
Então um novo homem, agora provido de coragem até mesmo para vasculhar os bolsos vazios – ausentes de dinheiro, como toda a sua vida, presentes de vazio, como todo o seu corpo – se volta para a colina, que antes brilhava num misto de Sol e orgulho, e percebe que lá havia um brilho diferente; o que via a todo o tempo era apenas o brilho da chave que deixou pra trás.
Uma nova subida recomeçava e a respiração ofegante já apontava os sinais de cansaço. Já no topo da ladeira, recolheu a chave com cuidado, colocou-a no bolso e apalpou, para ter certeza. Sim, seu tesouro estava bem guardado. Com um leve sorriso de satisfação, olhou em volta; crianças não mais brincavam de roda. Decidiu apreciar o Pôr-do-sol que se iniciava. Diante de tal espetáculo, absorto em suas lembranças, Raquel lhe invadiu o pensamento, e pela primeira vez se arrependeu.
Estivera frente a frente ao maior amor de sua vida, e fora precipitado. Arrependeu-se de não ter tentado uma reaproximação, um beijo se quer. E ela, o que faria? Não poderia ficar ali pensando nas possibilidades. Sua boca clamava por um último beijo, apenas.
_ Raquel, meu bem, como pôde cair nessa brincadeira infantil? – disse Ricardo, pela fresta da porta.
_ Vamos... Seu cavalheiro chegou para te salvar! Perdoe-me, meu amor, mas sempre quis ser o herói. – e abriu a porta – Sonho de criança, você sabe como é... - E entrou.
Raquel estava deitada, ainda encostada às grades. Suas mãos a apertavam, como se pudesse quebrá-las apenas com um pouco mais de esforço. Estava fria, sem marcas, sem sangue, sem beijo, sem nada.
Ricardo, frustrado por sua precipitação, quebra a capela num acesso de raiva, observado por Raquel, contrastando a cena em sua mais profunda serenidade. Ele beija de leve seus lábios frios e quase sorri ao lembrar que ela dizia ter o coração forte, para se opor ao dele. Quanta ironia numa vida, Raquel na verdade, tinha coração fraco.
Então, guiado pelos últimos raios do Pôr-do-Sol, lembrou-se de que não lhe restava nada mais a não ser a vista. Subiu na lápide mais alta e passou a observar.
Durante toda a sua vida, Ricardo sempre quis o que estava no topo, e só observou. Tinha, agora, uma oportunidade única de recuperar tudo o que havia perdido. Então, sem dinheiro, diante do mais valioso espetáculo, não hesitou em pular pra pegar.
(primeiro semestre de 2006)

(com carinho e saudade)

segunda-feira, 25 de julho de 2011

Gosto de dirigir

eu poderia resistir
a qualquer curva
e resisto
mesmo
quando passam por mim
no curvilíneo Rio de Janeiro
curvas perigosas

eu poderia resistir
e resisto
às imperativas categóricas
que, rebolativas,
são tesão por dever
e confundem os juízos
poéticos
a priori

eu poderia resistir
e resisto
aos incêndios dessa cidade
às pequenas explosões
que te tomam de assalto
e derrubam do salto
os antisociais

há fogo demais nesse asfalto
um fogo de saias
que faz calor de verão
que explode os bueiros
e conclama os bombeiros
à revolução

vibro com essa chama
e resisto
a esse risco flamejante
às curvas sinuosas
temperadas pelos
parágrafos
de Kant

mas passa o tempo
eu acelero
você transpira
só o que me pára
é capotar numa mentira

camuflada ali
no meio do caminho
onde nasce e desemboca
o futuro desse flerte
carioca

sábado, 23 de julho de 2011

23 de julho: Dia oficial do porre

Hoje acordei com a ligação de uma amiga e provavelmente atendi com a delicadeza típica de quem é acordado, mas o que ouvi do outro lado foi muito mais cortante: "Caramba, Tainá, a Amy morreu." Sem mais: grande perda artística. Fiquei sinceramente comovida, porque penso que a Amy Winehouse foi, no mínimo, uma das maiores cantoras da década. Decidi na virada do ano ir ao show dela aqui no Rio e hoje me sinto privilegiada. Como disse um amigo, "pelo menos ela conheceu Santa Teresa".

O que importa é que, falo sério, a partir de hoje, dia 23 de julho é o dia oficial do porre. Existem outros 364 dias para a Rehab.

You sent me flying foi a trilha sonora do dia:
http://www.youtube.com/watch?v=2d30k1EWWOc


(você não vai lembrar, mas lembro da gente, com a cabeça no olho do furacão e alguma tristeza no peito, sozinhas no silêncio noturno de uma praia ouvindo essa música. ouvindo essa mesma música várias vezes. que bom que existe jazz com mar para o trágico da vida e memória, pra temperar o presente).

domingo, 17 de julho de 2011

Vontade de tempestade

quando chove em mim e eu transbordo, também o texto se molha. minha alma encharca e pinga eu demais nas entrelinhas. elas pesam.
que pesem.
pouco me importa que essas letras úmidas terminem mofadas, não pelo tempo, tampouco pela gaveta, mas de tanto que carregam do meu eu-afogado. de tanto que me carregam, de tanto eu que essas linhas levam, coitadas.
e são mesmo assim, tão passivas, tão dispostas. basta que me importe em escrever o que quer que seja, numa perspectiva tradicional de organização, que elas surgem. paralelas e constantes, até a perfuração do ponto final. são, as linhas, reféns de qualquer um, de contrato a poesia. de lista de compras a caderno de caligrafia. não importa.
meu bem, só me importam as linhas porque, quando chove em mim, eu transbordo. temo que só por isso elas existam. mas eu disse que temo? pois eu temo porque não gosto de transbordar, você sabe.
transbordo porque quando um, em mim, mil. não há gota, não há um gole, um bombom, tampouco há metade de uma afetação: há dilúvio.
e você, que me afeta, é puro ar em falta, rarefeito, que beija em apneia e retoma o fôlego no perfume dos pescoços onde me procura.
você é nuvem, que passa delicada pela minha janela, dançando no ritmo do vento. acena do céu com braços de algodão e derrete em seguida, na minha frente, para reaparecer na janela de outros olhos. que seja. que seja breve e que passe. mas passe pela minha janela.
sabe, você é nuvem condensada, vez ou outra. falo daquela enorme aparição cinza que se forma no final dos dias quentes ou num inverno atípico no Rio de Janeiro, como o que estamos vivendo por agora. sei que o tempo andou fechado por aqui, mas me pergunto se você viu a lua linda por esses dias. era um céu limpo, em plena quinta-feira, de um azul intenso, que contrastava, sacana, com o brilho desse satélite libidinoso, peter pan das luzes.
mas dias como esses são claros demais. há que ter meia luz, há que saber ser nuvem condensada, meu bem. saber fechar o tempo e encher a cidade de um cinza que sinaliza seu desejo de tempestade.
até que, por fim, você chove em mim.
e eu transbordo.

domingo, 3 de julho de 2011

sexta-feira, 24 de junho de 2011

Resposta

eu não quero que você
sim
ou não

eu só quero que você
seja

quinta-feira, 16 de junho de 2011

Não é poesia


Volta e meia começo coisas. Coisas que começo pra terminar, coisas que começo depois que termino outras, coisas que não terminam, coisas que começo, termino e volto, volta e meia.

Enfim, decidi começar hoje o projeto "correr na praia" 2011. Afinal, todo o ano, desde que tenho 10, começo uma atividade física específica em algum mês. É de praxe. Nesse vício, já fiz de yoga a muay thai, mas, embora fique muito gostosa de shortinho de laycra (cof cof), nunca gostei de correr. No entanto, os gostos mudam, o paladar amadurece e faço parte do grupo dos que têm a alma flexível, apesar dessa ser uma afirmação estranhíssima. Assim, tomei gosto e agora pretendo fazer isso pelo menos 2 vezes por semana.

Ok, não é isso o que importa. O que importa é que, para inaugurar o "projeto", decidi ir hoje até o MAC, que, pra quem não sabe, é o museu de arte contemporânea de Niterói. Acabei dando uma circulada pelo pátio, porque não dá pra resistir àquela vista. Aí, bom, não é só porque acredito na lei da atração, mas quem faz licenciatura ATRAI. É claro que tinha que ter uma excursão escolar, claro. No pátio, havia um grupo de uns 20 quase-adolescentes, as idades variavam, estudantes de uma escola pública. Como o MAC só abre às 10, estavam todos espalhados fazendo hora e eu, que sou uma boa observadora, de repente escutei a pérola "Eu nunca fui a um museu", seguida por outras vozes, que pipocavam: "nem eu".

É realmente inacreditável. São afirmações como essas que me inspiram a ser professora e plantar nessas cabeças um pouco mais de interesse, que cria a oportunidade. Um dos principais objetivos do professor, pra mim, deve ser semear a curiosidade, provocar o encontro com o novo e o interesse em descobrir. A fala desses meninos denuncia um sistema básico de ensino público predominantemente sem paixão. Triste.
Tudo bem, era uma excursão escolar, mas, o que quero dizer é que a afirmação do menino, de uns 14 anos, mostra que isso deveria ter sido feito há séculos.
Outro dia vi uma reportagem de uma menina estrangeira que pintava aos 5 anos. Tinha um senso estético incrível porque foi estimulada. Isso prova que não dá pra dizer que que as crianças, por si só, não têm o menor interesse. Ele precisa vir de algum lugar. Se eu contar que eles (na foto) pareciam ansiosos para abrir o museu e, quando abriu, saíram correndo, vocês nem acreditam.
Se admitimos, embora contrariados, que existem famílias de diferentes rendas dentro de escolas diferentes, concordamos que o estímulo deve partir do meio acadêmico. Ele deve funcionar de modo que alunos diferentes recebam os mesmos incentivos. Essa é a ideia. E a moral da história é que, o que eles dizem eu assumo como inspiração, pra digerir. Mas nada disso é poesia.

sábado, 11 de junho de 2011

Cotidiano

gente morre
gente todo o dia morre
trepa, casa, cria
e morre gente todo o dia.

cliente corre
cliente todo o dia corre
troca, compra, financia
e corre corre todo o dia.

urgente porre
urgente todo o dia: porre
trabalho, carro, monogamia
e porre urgente todo o dia

pente percorre
pente todo o dia percorre
trança, cremes, perfumaria
e percorre pente todo o dia

quente transcorre
quente todo o dia transcorre
truques, cabelos; taquicardia
e transcorre quente todo o dia

mente socorre
mente todo o dia socorre
trava, conclui, reinicia
e mente: socorre todo o dia.

presente escorre.

presente
todo o dia
escorre.

trepa,
casa,
cria,
e morre presente todo o dia.

quarta-feira, 8 de junho de 2011

Tensão pré-movimentação

Passei mais de uma hora na frente do computador, com vontade de escrever. Tenho mil coisas pra fazer, mas senti necessidade de ficar quieta, refletindo sobre a minha irritação. Fiquei puta da vida com essa passividade e descobri que não sei escrever irritada. Ou seja: me irritei ainda mais agora, porque passei horas improdutivas.
Quase sempre que me sinto irritável assim, preciso de algo novo. Já decifrei. Parece que a mínima inércia me causa tensão, que, porque estou viva e mergulho fundo no que me incomoda, gera algum movimento. Em tempo.

Aí essa TPM transgressora me diz duas coisas:

1- Você tem a história, pode conseguir algumas horas de dedicação e só vai saber se tem capacidade quando decidir começar, porra.

2- Faz outro blog, gata, porque procurar contos eróticos no Google e parar numa poesia, ainda vai, mas procurar abstração e esbarrar em tensão sem conto vai ser foda.

terça-feira, 7 de junho de 2011

Divagações sobre o tempo presente

C: Nossa! Que-cheiro-bom.

: É. Perfume é um convite.

C: Nesse grau, ele inteiro é um convite.

: Aliás, não só o perfume, mas todo esse momento; o momento presente é um convite.

C: Convite ao quê?

: Um convite ao próprio momento presente.

C: Sei. E esse momento presente nos faz escolher. Isso me inquieta. Como garantir que essa escolha é a melhor? E aquilo de que se abre mão para escolher algo? E todo o resto que fica de fora?

: Então... Penso que a escolha é uma liberdade que se impõe. Quase um imperativo. E você tem a responsabilidade de fazer o melhor possível do seu presente. Ele é tudo o que se tem. É o que você pode devorar, então saboreie. O resto é suposição.

C: É, verdade. O resto é suposição... O problema pode estar (interrupção da mesa ao lado: "irmãozinho, quebra mais um galho aí") na suposição. Negam o presente, imaginando o que fariam com outras escolhas. Tipo o sexo: se você transa com um carinha x pensando no y você não vive x nem y.

: Pois é...

C: O que as pessoas vão achar se descobrirem que eu estou transcrevendo isso?

: Vão achar que o momento presente é tão importante pra você que ele precisa ser registrado. Seria fantástico fazer isso sempre... o passado é sempre tão relativo. Lembrança é afeto; não dá pra confiar. Você só pode ter certeza sobre o presente. E mesmo assim...

C: Tô te achando muito sartreana nessa mesa de bar em Vila Isabel.

: Adoro um boteco. Como se você, com essa boina, não fizesse um ar muito mais blasé.

C: Adoro um blasé.

: Perceptível. Bom, a moral da história, pra ser bem Vila Isabel, tá no bife dessa mesa aqui do lado. No bom português: tem que comer enquanto tá quente. Isso é valer o presente. O resto é mal-passado.

E ponto.

domingo, 5 de junho de 2011

Tempo da beleza

Eu: E a flor?
Ela, sentida: Você comprou tão madura que hoje, quando acordei, ela estava seca e aí eu... joguei fora. Deixar ela feia por aí seria um descaso.
Eu: Claro, você fez bem.
Ela: Acho que nós temos que abrir mão das coisas assim que elas murcham.
Eu: Concordo. É o tempo da beleza.
Ela: Exatamente.

quinta-feira, 2 de junho de 2011

Vale tudo

A vida começa no tapa, essa é a verdade. Quando aquele sujeito te tirou do dentro mais dentro que você já tocou e te fez humano num susto só, foi no tapa. Antes, você era quase peixe, numa quase-hidromassagem orgânica e habitava aquele esconderijo sem saber que se escondia. Você era o mesmo nada que é hoje, mas sem saber que é justamente ser nada o que te permite ser alguma coisa. É mesmo engraçado isso de ser sem saber que é. Mas era assim.
Pois bem, se eu tivesse qualquer capacidade linguística quando nasci, se eu tivesse nascido sabendo que sou, assim, só de sacanagem, eu teria dito alguma coisa ao cara que me tirou de lá de dentro e fez com que minha primeira experiência com tudo isso de ser fosse um choque. Porque um tapa não basta. Quando, depois da palmada, meus pulmões encheram de ar e percebi que eu era um corpo-quente-num-puta-ar-condicionado, certamente pensei: o drama continua, bb, a vida começa no tapa e no choque térmico. Nascer é dramático.
Se o anacronismo é o tom do texto, devo dizer que responderia a palmada com o grau de petulância que assumo hoje: Bate mais.
É isso mesmo, deixemos de hipocrisia: boa é a relação que começa na porrada. A respiração inaugura o primeiro round desse vale-tudo que é a vida, e é com um tapa que você vira gente.
Desde então, é só embate. E você vai descobrindo que viver também é dominar o próprio corpo e aprender a destilar prazer dessa disputa. Percebe que deve enfrentar a própria consciência e, com isso, se encontra, muitas vezes, no meio do ringue com a consciência do outro. Que delícia é, quando isso acontece. Um vale-tudo de verdade é um encontro de duas vidas que se permitem bater, apanhar e todo o resto. Eu sou dessas, quando a outra consciência me interessa.
Por isso, apesar de falar com certo mau humor da minha primeira experiência no mundo, não gostaria que fosse outra.
Um tapa afeta. Aliás, o tapa é a própria afetação, e deixar-se afetar é o modo mais gostoso de viver.

terça-feira, 24 de maio de 2011

Mordida de escorpião

Não é segredo que minha principal inspiração, quando algo me toma de vontade de escrever, é o outro. Gosto de observar pessoas. Gosto muito!

(Gosto de pensar que a senhora já idosa, sentada, comendo seus biscoitos de nata e tomando chá por volta das 5, nem sonha que, do outro lado do Café, penso nela. Observo seus cabelos, muito brancos, bem penteados, fazerem par com suas marcas e a forma como segura a xícara.
Observo o modo como olha pela janela e pisca lentamente, como quem pressente a chegada de uma lembrança. Tento observar seu passado, mas é tão difícil. Senhoras desse tipo carregam segredos protegidos pelos cadeados de segredo. Possuem a graça das bonecas russas: guardam em sequência fragmentos de si. Mais: guardam em si outras dessas. São baús, não baixam a guarda. Guardam o passado a sete chaves, como aquele segredo guardado em cadeado de segredo e, quando se abrem um pouco, aos que têm sorte, eis que está lá dentro outra senhora, um pouco mais frágil, talvez sorrindo para o garçom e dando boas gorjetas.
Assim são as mulheres fortes; tal qual bonecas russas: com charme, vê-se dentro delas delicadeza em série, até caber na palma da mão.)

Volto a dizer, depois da necessária interrupção dos parênteses, que, em matéria de inspiração, sou muito pouco egocêntrica. É claro que você pode argumentar: "narciso acha feio o que não é espelho". Mas, ainda que a forma como exponho o outro tenha relação com o modo como me apresento, não muda o fato de que observo e me interesso por isso.
Comecei esse discurso porque pretendia falar sobre mim até a senhora ao lado me arrebatar. Perdi o interesse inicial, o texto mudou de foco; eis o devir. No entanto, alguma coisa sobre o que me propus inicialmente persiste: terminei há poucas semanas "Cem anos de solidão". Tive certa resistência para começar; o livro é longo e tenho uma série de livros longos que me prometi que leria antes de encontrar com o Gabriel García Marquez. Não obstante, devorei e foi uma das coisas mais delicadas que já li. Poesia pura, em prosa.

Lá pela metade do livro, parei num trecho, dos mais intensos, que me pegou pelas pernas. Melhor do que surpresa: me pegou desprevenida, tomando um drink antes de ir pra cama - mania de quinta-feira.
Depois dele, digo: mais gostoso do que um diálogo intenso, é a frase que entra sem doer e você não percebe quando corta, mas quando já está dentro.

Pois:

"- Porra! – gritou.

Amaranta, que começava a colocar a roupa no baú, pensou que ela tinha sido picada por um escorpião.
- Onde está? – perguntou alarmada.
- O quê?!
- O animal! – esclareceu Amaranta.

Úrsula pôs o dedo no coração:
-Aqui."

Quando li, fiquei em silêncio por algum tempo, digerindo. Senti uma vontade muito grande de dizer algo para Úrsula. E para tantas outras Úrsulas, com escorpião no coração. Passei um tempo sem a resposta, até que o trecho me voltou à cabeça enquanto lia Nietzche, há dias atrás, e me deparei com uma máxima que também é minha:

"... em Fontenelle, por exemplo, a quem certa vez puseram a mão sobre o coração, dizendo: 'O que você tem aqui, meu caro, também é cérebro'."


(Quando pagou a conta, saciada, pareceu sorrir pra mim, a senhora. Sorriu com o canto da boca e nossos olhares se cruzaram, num segundo desse dia que é qualquer na vida dela. Olhando novamente, enquanto a vejo fazer sinal para um táxi, percebo que me sorriu porque sabe o que é ser inspiração.
Penso, com vigor: como é bonito esse ar de segurança, próprio de quem encara o desconhecido e sorri. Talvez ela, senhora sabida, tenha visto qualquer fragmento dela em mim. Talvez sorria dessa maneira toda a vez que reconhece, num segundo qualquer da sua vida, uma mulher que não baixa os olhos para um olhar intenso.

Sem mais talvez: eu, desconhecida, também sou boneca russa. E um pouco de escorpião.
Por isso, qualquer coisa que eu tenha aqui, meus caros, seja paixão em potência ou segredo, em cadeado de segredo, é sincero, mas também é cérebro.)

terça-feira, 10 de maio de 2011

Do perigo e sobre

Quisera eu que andasse com blusa de caveira e um aviso no pescoço. Tal qual os frascos dos venenos do laboratório, quisera eu poder dar nome às tantas entorpecências que me causa.
Quisera poder embalar essa boa droga que você é e vender seu charme pelas esquinas, como se não me importasse com quem te compra. Como se quisesse compartilhar com os pobres que andam sem prazer pelas esquinas a pontinha do gozo que me desponta. Quisera eu não te querer por inteiro; quem me dera que bastasse querer meio.
Quisera eu que, quando cruzasse as pernas, um alarme sonoro gritasse e, tal qual uma sirene que anuncia a urgência, me arrancasse do estado de desatenção que a pressão das suas coxas acomete.
Mentira. Quisera nada.
Quisera eu que cruzasse de novo, isso sim. E em silêncio, com esses olhos de sirene que só você, gritando uma urgência que o calor já anuncia. Quem dera.
Quisera eu que fosse meu esse seu ar de quem quer mais. Porque, em mim, já jaz o ar de quem quer tudo.
Quisera eu que a música baixasse, a luz não fosse tanta e se conservasse ainda mais esse mistério; quisera eu ser penumbra e te deixar em tato e só. Quem dera que me tateasse às cegas e traçasse em mim o caminho em que se perde.
Quisera eu que me pedisse mais.
Como quem tem sede, muita sede, e bebe sem respirar a água que põe com pressa no copo - metade ambiente, metade gelo. E, quando termina, diz de uma vez: Outro. Quisera eu que, sem pressa, mas com tamanha avidez bebesse meu corpo - metade serpente, metade zelo.
Quisera eu mais duas garrafas, três, pra ver descer pela garganta os nãos que restam, com os segundos e os ponteiros do relógio. Ver sua boca colorida no último gole, denunciando a liberdade.
Quem dera que o passado perpasse e permita que o presente enfeitice.
Quisera eu que me desse em fogo a outra face.
E que me desse mais.
Com vontade. E de novo.
E me desse todo o dia, um pouco além desse perigo.

sábado, 7 de maio de 2011

Loucura, chiclete e som


"Você não sente nem vê
Mas eu não posso deixar de dizer, meu amigo
Que uma nova mudança em breve vai acontecer
E o que há algum tempo era novo, jovem,
Hoje é antigo, e precisamos todos rejuvenescer

Nunca mais meu pai falou: "She's leaving home"
E meteu o pé na estrada, "Like a Rolling Stone..."
Nunca mais eu convidei minha menina
Para correr no meu carro...(loucura, chiclete e som)
Nunca mais você saiu à rua em grupo, reunido,
O dedo em V, cabelo ao vento, amor e flor, quero cartaz

No presente a mente, o corpo é diferente
E o passado é uma roupa que não nos serve mais

Como Poe, poeta louco americano, eu pergunto ao passarinho:
"Black bird, o que se faz?"
E raven never raven never raven
Black bird me responde:
"Tudo já ficou atrás"
E raven never raven never raven
Assum preto me responde:
"O passado nunca mais"

Você não sente, nem vê
Mas eu não posso deixar de dizer, meu amigo
Que uma nova mudança em breve vai acontecer
E o que há algum tempo era novo, jovem,
Hoje é antigo,
E precisamos todos rejuvenescer."

segunda-feira, 2 de maio de 2011

Escrevo enquanto te espero

Passam pessoas à hora do almoço
com passos de dançarinos
no centro da cidade

passam pernas enquanto te espero
pernas de todos os tipos passarinham:
longas, feias, bonitas, cobertas
pernas provocantes passam
e fazem um charme que não vejo
porque esqueço
enquanto te espero

dançam pessoas à hora do almoço
no ritmo que o relógio grita:
tic tac
tic tac
é o que sussurram os passos
dos que passam no centro da cidade

também faz tic tac em mim
enquanto você não passa
mas, ao contrário das pernas
que têm pressa no centro da cidade
eu pressiono:
coxas cruzadas,
tesas,
porque é o som do tic tac
que desperta o tesão da caneta
com a qual escrevo
enquanto te espero

domingo, 1 de maio de 2011

Aos 13

(Gulosa):

"Ando pela adolescência, bem devagar, para que ela não passe tão rápido quanto passou a minha infância. Quando criança, escutava Cazuza, andava de patins, subia em árvores, lia mais do que comia e no jogo da verdade, minha "consequência" era sempre dar estalinhos nos amigos. Hoje, os patins não cabem mais nos meus pés e as pessoas costumam perguntar se eu não vou parar de comer. Eu ? Bom, eu digo que ler queima calorias."

(Exagerada):

"... O apetite ainda estaria vivo não fosse a mão que me subia.
Orgulhava-me quando nos jantares em família, havia a indagação: não tem namorado não, menina? Adorava nossas reuniões, e era sempre tão espevitada, tão cheia de esperança.
Deixava que respondessem de prontidão: Que nada! Ela ainda é criança!
Pois lá estava eu, infante, diante de um sujeito indecente.
Um eterno e termo enjôo me consumiu por um segundo,
A impressão é de que nunca mais sentirei fome novamente."


(Uma das coisas mais divertidas que me aconteceu recentemente foi descobrir uma pasta de textos antigos num computador que quase não uso mais. Confrontar o passado é uma experiência muito curiosa. Tão curiosa que, a partir dessa reflexão, decidi que as aspas ficariam bem nos textos acima.
Não pretendo, com isso, insinuar que não me vejo em você, garota. Minha citação pretende muito mais respeitar nossas individualidades e reconhecer que o ontem e o hoje são dois eu's de mim.
Claro, seria muito difícil olhar o passado e pensar que contemplo a mim mesma, se eu não reconhecesse tantas semelhanças.
Quer dizer: se houvesse um devir cruel e eu resolvesse virar evangélica, parar de comer chocolate ou vibrar com o casamento do príncipe da Inglaterra, que menina seria aquela? Seria eu?
É claro que mudei muito, mas, posso dizer que, no que escrevi aos 13, reconheço o que sou hoje, em contorno.
Poderia não ser assim. Poderia ser radicalmente diferente e seria muito divertido, inclusive.
Porque somos vários. Em potencial, ao mesmo tempo e ao longo da vida. Sim, minha personalidade se constrói de maneira mais ou menos linear.
Mas, embora eu reconheça a menina de língua ferina que era quando escrevi aos 13, valorizo o múltiplo e o "nada" como possibilidade de definição para o "ser". A cada ano. E mais.)

sábado, 30 de abril de 2011

Brinde ao possível

"Pelo amor e o que ele nega
pelo que dá e cega
pelo que virá enfim,
não digo que a vida é bela
tampouco me nego a ela:
_ digo sim."

sexta-feira, 29 de abril de 2011

God sell the queen

Please.

sábado, 23 de abril de 2011

Dest-erro.

Eu quero um trecho que marque a cara do meu erro, para que eu nunca mais esqueça:

Meu erro é filho da puta. É grande, é gordo e cheira mal; meu erro é assim, impossível de me passar despercebido. É um erro do caralho.

Devo dizer, caros, que a pior parte do meu erro é ser um bis. É um bis de um show ruim. É uma reincidência, que carrega uma incapacidade torturante.

Meu erro é um texto péssimo. Mas é meu. E é tão meu que se entranha e se faz presente em cada extremidade. Mais ainda dentro.

Vou contar:

Meu erro montou acampamento no meu coração. E quer terra, veja só.
Mas, como dói assentar um erro! Você já tentou?
Dói devagarinho.
Porque ele remexe a terra com unhas grandes e destrói o que estava construído antes.
Um erro não faz carinho, nem fala no ouvido; ele arranha.

Que seja.
A mesma veia cava da angústia, reconstrói.
E talvez sua função, meu erro, tenha sido o desterro.
Tenha sido amaciar a terra desse terreno baldio que é o meu coração.

quarta-feira, 20 de abril de 2011

Um diálogo que vou querer lembrar

_ Vai ficar por aí?
_ Não, estou de passagem.
_ Certo, mas preciso falar com você. E também estou de passagem, já que só vou falar sobre isso uma vez.
_ Tudo bem. Tenho alguns minutos para ouvir com atenção.
_ É que hoje de manhã sonhei com você, sabe-se lá o porquê.
_ ...
_ Sabia que você ia fazer essa cara. Mas, sabe, eu amo muito minha namorada, respeito muito o que ela sente por mim e o que sinto por ela. Só que, algumas vezes, parece inevitável não pensar em você com desejo e, muitas vezes, não dá nem pra não pensar em você. Pronto, falei. Termino aqui porque, só de falar com você sobre isso, acho que já começo a trair. Mas eu tinha que falar, você me conhece.
_ Olha, eu te quero muito bem. Sabe disso. Me sinto lisonjeada quando escuto algo
assim, mas não vejo o que isso muda para nós. Pelo menos agora. Veja bem: fazer escolhas é importante. Você escolheu viver o que vive hoje, eu também e estou muito feliz com isso. Por outro lado, o futuro é o incerto. Eliminar as possibilidades é precipitado e imaturo.
_ É, isso não muda nada para nós. Estamos distantes e dificilmente ficaremos perto novamente. No entanto, você é uma constante em mim.
_ Eu sou uma variável. E, convenhamos: faz parte de uma vida satisfatória esse tipo de desejo. Também acordo pensando em pessoas, muitas vezes. Não se culpe, nem pense nisso como uma traição. São relações diferentes e admiro a sua sinceridade.
_ Sinto sua falta, mesmo sem saber como esse sentimento poderia existir. Vivemos na mesma cidade por pouco tempo e você fez questão de não ultrapassar o diálogo.
_ Ah, não diga que isso não é motivo pra saudade. Eu e você sabemos que a intensidade das relações não é medida pelo tempo. Nem, talvez, pelo que foi feito. Mas, muitas vezes, pelas linhas e entrelinhas; pelo que dissemos ou deixamos de dizer. E nós falamos sobre coisas muito sensíveis.
_ E eu, agora, sou pura sensibilidade e sinto uma vontadezinha de chorar...
_ Não, peloamor. Não quero ver você chorar. De qualquer maneira, acho que fiz parte de um momento chave na sua vida. Você descobriu, enquanto nos conhecíamos, coisas que refletem o que você vive hoje. É claro que isso nos marca.
_ E eu, tive a sorte de fazer parte de algum momento chave?
_ Sem dúvida. Minha vida tem várias portas.
_ E qual foi a porta que abri?
_ Bom, com você me vi, pela primeira vez, frente à alguém que sabia o que sentia, ainda que fosse inédito, e dominava muito bem isso. Era uma mulher que sabia lidar com a paixão que sentia. Que não tinha medo de estampar esse desejo, ainda que eu não estivesse receptiva, no momento. Essa atitude me constrange até hoje.
_ "Gosto de pessoas corajosas, que não têm medo da paixão". Foi mais ou menos isso o que você me disse quando contei que estava apaixonada por você.
_ Foi. E você foi corajosa.
_ E agora me sinto uma covarde, falando sobre isso com você às vésperas do meu casamento. A verdade é que sinto a sua falta. E sinto falta dos nossos diálogos. Gostaria de estar mais próxima.
_ Também gostaria que estivesse mais próxima para compartilharmos vontades e angústias. Aliás, uma corrente filosófica das que mais simpatizo diz que o Homem só atinge a plenitude do seu ser na angústia. O que pode ser um tanto trágico, mas, pra mim, é justamente na angústia, na escolha e nos limites que nos sentimos mais vivos.
_ Acho muito gostoso te ouvir falar. É uma pena que você tenha sido tão breve na minha vida, morena.
_ Não sinta pena. É a brevidade do gozo que multiplica o prazer.

domingo, 17 de abril de 2011

Quando a Lua pede

a lua dessa noite te pede três coisas:
que ponha uma música
que puxe essa âncora
que deixe a maré subir
e descer...
e subir...
e descer...

rebolar eu sei:
você é um barco a motor
louco pra ficar à deriva.

quinta-feira, 14 de abril de 2011

Primeiro estranha-se

depois entranha-se.

(Fernando Pessoa)

domingo, 10 de abril de 2011

Cor-respondência

"Remeta-me
os dedos
em vez de cartas de amor
que nunca escreves
que nunca recebo.
Passeiam em mim estas tardes
que parecem repetir
o amor bem-feito
que você tinha mania de fazer comigo.
Não sei amigo
se era seu jeito
ou de propósito
mas era bom
sempre bom
e assanhava as tardes
Refaça o verso
que mantinha sempre tesa
a minha rima
firme
confirme
o ardor dessas jorradas
de versos que nos bolinaram os dois
a dois.

Pense em mim
e me visite no correio
de pombos onde a gente se confunde
Repito:
Se meta na minha vida
outra vez meta
Remeta."

Elisa Lucinda

(mais dela, delícia de poeta contemporânea: http://www.escolalucinda.com.br/bau.htm)

sexta-feira, 8 de abril de 2011

Ecos da estação


- Eu te amo. Você me ama tanto quanto eu?
- E quanto você me ama?
- Infinito.
- ...
- Hein, me ama tanto quanto eu te amo?
- Não sei, é complicado, não gosto de pensar no fim.
- Mas é justamente o sem-fim!
- Só que pra pensar no sem-fim, é preciso pensar no fim primeiro.
- Ok, então te amo em círculo.
- Então eu te amo em círculo.

.....................

(Do fundo dessa lembrança,
pedras de açúcar acertam a tela
é outono:
memórias caem das árvores
e o chão fica cheio de passado)

terça-feira, 5 de abril de 2011

Górgias, alguns séculos a.C.

"Os encantos inspirados por meio das palavras se fazem indutores de prazer e deportadores da dor; porque a força do encanto, somada à opinião da alma, fascina e persuade, transformando as palavras em feitiço [...]. A mesma razão tem a força da palavra ante a disposição da alma, como a dos remédios ante a disposição do corpo, pois assim como alguns remédios acalmam a doença e outros a vida, assim também as palavras. Umas afligem, outras espantam, outras alegram, outras transportam os ouvintes até ..."

domingo, 3 de abril de 2011

Careless Whisper

A verdade é que, nessas tardes, quando as nuvens carregadas intimidam o Sol do Rio de Janeiro e o tempo fecha assim, sem avisar às moças que circulam de biquíni pelo posto 9, o seu mistério se acentua.
É tão bonito, porque você também fica cinza, como a paisagem. E veste preto. E prepara um drink e falamos sobre coisas intensas. Eu digo que Dogville foi um dos filmes mais perturbadores que já vi e você, com um olhar frágil, diz que não teve coragem de rever o "Anticristo", ainda. Concordamos sobre o Lars Von Trier ser uma delícia de provocação e você levanta.
Enquanto escolhe o incenso, observo seus dedos, lentos, selecionarem dois ou três. Acendemos o primeiro naquela vela charmosa e, quando a chama se aproxima e o seu rosto esquenta, surpreendo aquele olhar frágil novamente em você.
Há muita beleza numa mulher forte que deixa escapar um olhar delicado. Os contrastes me seduzem, você sabe. Adoro preto e branco, doce e salgado, tapa com carinho.
Os contrastes potencializam e, por isso, em dias tão cinzas quanto esse, mulheres como você inspiraram os sólos de guitarra que escuto agora.

domingo, 20 de março de 2011

terça-feira, 15 de março de 2011

Para os intensos

Antes de entrar no Pedro II para começar o tão esperado ensino médio, lembro claramente de ouvir minha mãe dizer: "agora você vai ter aula de Filosofia! Acho que vai gostar."
Depois da primeira aula, a suposição se confirmou. O professor não era lá muito didático, mas o primeiro contato com a matéria foi positivo.
Minha memória, ainda que seja falha em determinadas situações, sobretudo as que me desagradam estética ou politicamente, conservou vivo o primeiro trabalho. Deveríamos parafrasear Sócrates ao completar a lacuna: "uma vida sem ... não merece ser vivida." Eu, lutando contra o impulso de escrever "chocolate", "vinho tinto", ou, quem sabe, "sexo", escrevi algo não menos verdadeiro, sem o qual nenhuma das opções anteriores valeria: "paixão".
Carreguei a frase comigo durante todo o ensino médio. Fiz valer minha própria premissa e me apaixonei pela Filosofia.
Mais tarde, quando decidi cursar essa faculdade, com muito mais provas de que uma vida sem paixão, definitivamente, não merece ser vivida, esbarrei em questões que, curiosamente, me remeteram ao primeiro trabalho.
Com o estudo da Filosofia Política, já estava claro, para mim, que estudar a vida me interessava especialmente. Conheci, com paixão, as diversas concepções políticas que povoaram a Grécia Antiga e, mais tarde, me senti particularmente atingida pelo sufocante Leviatã de Hobbes. Penso que há beleza nesse tipo de matéria, porque trata de teorias que afetam pessoas e a forma como as pessoas se afetam (me) é inspiradora.
Algum tempo depois, descobri que, para alguém que se interessa pelo estudo da vida, pensar na morte é inevitável.
Nesse sentido, o existencialismo derruba vários tabus que cercam o fim. Hoje, escutando Lobão, ouvi: "mais vale viver 10 anos à mil do que mil anos à 10". Há quem discorde e Aristóteles provavelmente diria: "Sem extremos, caro compositor. Vamos viver 100 anos à 500, que tal?" O que mais interessa a partir da música é que a morte não deve ser negada.
Como diz o trecho de um livro bastante didático:

"Heidegger chegou ao ponto de afirmar que a existência humana é ser-indo-para-a-morte. Para viver autenticamente, temos de encarar de frente o fato de nossa mortalidade e assumir a responsabilidade de viver vidas significativas à sombra da morte. Não devemos tentar escapar da ansiedade pessoal e da responsabilidade pessoal negando esse fato.
...
Para Heidegger, viver à sombra da morte não é apenas mais corajoso; é o único jeito autêntico de viver, porque nossa hora pode chegar à qualquer minuto."


Enquanto ela não chega, Sartre, com a máxima "a existência precede a essência", nos dá o diploma de engenheiros da nossa própria vida. "Condenado a ser livre", é o que você está.
E, para os que adoram auto-definições, diz o livro, a partir de Sartre: "Somos seres indeterminados, sempre livres para nos reinventar".

Enfim, o existencialismo é uma corrente filosófica intensa, deliciosa, que grita a cada leitor uma sugestão; em mim, quase sempre ecoa meu primeiro trabalho de Filosofia e qualquer coisa repete, dentro: "uma vida sem paixão não merece ser vivida".

quinta-feira, 10 de março de 2011

Carnaval é:

Sair pra tomar um vinho e acabar num boteco na praça.

quinta-feira, 3 de março de 2011

Nudez literária

_ Você deve ter um blog.
_ Não vim com esse dom da escrita não! Uma pena. Acho lindo. Queria saber.
_ Eu não! Essa galera que escreve não vale nada...
_ Tá falando sério?
_ (cínica, ela diz que sim)
_ haha, você tá brincando...
_ É que eu escrevo, babe. Não queria que soasse prepotente.
_ Ah, tá vendo? Te elogiei sem saber!
_ Pois então: é exatamente o tipo de elogio que eu dispenso.
_ Sendo assim, me passa o seu blog que eu avalio se vale o elogio.
_ (ela riu, com gosto) Meu blog é uma casa de família. Não abro a porta pros primeiros olhos castanhos da noite.
_ E se eles forem os últimos?
_ (gargalhada) A verdade, meu bem, é que você não tem um blog. Nada que te desnude.
Se, por acaso, tivesse, eu entenderia como uma nudez acompanhada. Mas ficar no voyerismo é mole... e não vai rolar.
_ Ah, não seja tão dura. Não curto ficar só olhando, mas, no momento, a curiosidade que você me desperta é o que tenho para oferecer.

quarta-feira, 2 de março de 2011

Sweet sixteen

sei que esse baque abarca um brejo fundo
onde você se tranca agora.
sei que se vinga do resto do mundo
calando a dor que te devora.

sei que isso te faz mais forte
e que há qualquer coisa de lindo na dor calada
mas deixe-me ver esse corte
e costurar sua ferida
com a experiência de quem já foi cortada.

pra suturar esse abismo
comece com umas doses de álcool,
para desinfetar.
tire essa roupa,
solte os cabelos,
deixe a meia luz esquentar o lugar.
faça um bom prato:
o cheiro de boa comida
é a vida em pleno ar.

nos primeiros dias
também é indicado
devorar um CD, de entrada.
a guitarra do BB King,
filet mignon do blues,
é macia de ser mastigada.

...

dias depois,
quando terminou a última faixa,
arrotando sólos de guitarra,
sentiu-se munida de uma dose a mais de vida.
ficou à sós com o silêncio
e contemplou a cicatriz do que antes era ferida.
num sussurro firme e abafado,
ela afirmou:
"essas são linhas do nosso passado."

Maria Gadu

"Vamos prum lounge, beber um vinho safra ruim e conversar sobre a tv?"

Porra, quer coisa mais broxante?

terça-feira, 1 de março de 2011

Paradoxos lógicos e semânticos

"A palavra heterológica é autológica ou heterológica?"

segunda-feira, 28 de fevereiro de 2011

Leminski



"Apagar-me
diluir-me
desmanchar-me
até que depois
de mim
de nós
de tudo
não reste mais
que o charme"

Presentes

No sábado não ganhei só uma noite deliciosa, mas vários livros. Num deles, "guia politicamente incorreto da história do Brasil" - haha, "a sua cara!", ela disse - tinha como dedicatória, no final: "dar um livro não é presentear, dar um livro é fazer um elogio". Eu e meu ego concordamos, ok, Rafa?
Além disso, é muito bom adicionar à estante "Toda a poesia", do Ferreira Gullar, assinado por uma professora de português tão inesquecível quanto a Bia. Futura Doutora (quase!), ninguém melhor do que vc para presentear "toda a poesia"!

Deixo, então, o poema que provavelmente motivou o presente e só me traz boas lembranças: ouvi pela primeira vez no primeiro sarau que frequentei e declamei pela primeira vez no colégio mais querido da minha vida, no primeiro sarau que organizamos.

Assim, Cantada

Você é mais bonita que uma bola prateada
de papel de cigarro
Você é mais bonita que uma poça dágua
límpida
num lugar escondido
Você é mais bonita que uma zebra
que um filhote de onça
que um Boeing 707 em pleno ar
Você é mais bonita que um jardim florido
em frente ao mar em Ipanema
Você é mais bonita que uma refinaria da Petrobrás
de noite
mais bonita que Ursula Andress
que o Palácio da Alvorada
mais bonita que a alvorada
que o mar azul-safira
da República Dominicana

Olha,
você é tão bonita quanto o Rio de Janeiro
em maio
e quase tão bonita
quanto a Revolução Cubana


Ferreira Gullar

quinta-feira, 24 de fevereiro de 2011

Do gosto e da língua

Nunca gostou de pontos. Nem quando esboçou seus primeiros poemas, tampouco quando caiu de bicicleta naquela tarde cinza.
"O ponto é a menor parte da reta", aprendeu na escola. O desgosto foi maior ainda: nunca foi reta. Nunca nem soube desenhar uma reta, pra falar a verdade. Gostava das curvas, ouvia com prazer Elis cantar Roberto, na estrada de Santos. Admirava o desenho dos corpos - arredondados, fartos, ou, por vezes, como violões, a desfilar em orquestra - gostava do balanço dos andares, do rebolado, que circula o ar que amacia.
Quando começou a frequentar as aulas de inglês, descobriu que "retos" também eram os regimes ditatoriais. Nunca gostou de regime. Desde a infância, acostumou-se a comer sem pudores nem vírgulas.

Nunca gostou de pontos.

Nem quando o vazio pediu por reticências, tampouco quando algum fim se aproximava. Na escola, construia períodos longos, típicos do gênero narrativo, evitando a todo o custo a triste chegada daquele maldito. Sofreu com a laconicidade das dissertações, no começo. Por outro lado, sempre gostou dos inícios! Porque o começo é curvilíneo e ela gosta das curvas. É uma daquelas descidas, nas quais o carro acelera e faz frio na barriga.
Nunca gostou de frio. "Frio só é bom no início", ela dizia.
E sempre gostou de dizer. Como falava! Amadureceu aprendendo a cultivar o silêncio, de tempo em tempo.
Nunca gostou do tempo. Não conseguia desvincular dele a imagem de Cronos, que até os próprios filhos engoliu. A cada ruga, sentia mais próxima a saliva do Grande. Não conseguia abstrair, beijar o tempo, sentir prazer em ser engolida. Era uma cabeça dura.
Certa vez, quando repetia para um grupos de amigos a velha metáfora do comedor de criancinhas, responderam: "que delícia deve ser a língua de Cronos, com todo o tempo do mundo". Piada safada. É, ela gosta disso.
Seus gostos azedam ou adoçam, a cada aniversário. E, a cada ano, ao menos um ponto é necessário: aquele que ajuda a compor a reta que deságua na garganta de Cronos. Mas, no meio dos dentes afiados do tempo, há uma língua sem hora.
Aproveitemos!

quinta-feira, 3 de fevereiro de 2011

A linha tênue

Pingando, encontrou um hotel na beira da estrada. Atravessou o corredor, seguida pelo barulhento roçar da bota de borracha, molhada, no piso de madeira.
Finalmente, pára de encontro ao quarto. No fundo do silêncio, a vizinha geme: chove em mim.

Podia ser poesia, mas é só goteira.

terça-feira, 4 de janeiro de 2011

Engolir galinhas e outras vulgaridades

quando chegou o fim da linha,
meu bem,
eu percebi com o fim da fome:

cada frase que sai da boca
da mulher que você come
tem um gole de veneno
no sujeito e no pronome

cada s que ela usou,
se enroscou no meu pescoço,
fez psiu no meu ouvido,
devorou o meu almoço.

em resposta,
conjuguei o pretérito perfeito:
que também é o tempo
do não querer mais.
cobrei o rosbife mal passado
em garfadas de pontos finais.

...

quando chegou de volta a fome,
meu bem,
eu percebi com a galinha no fim

foi assim, de repente
estava ela na minha frente
dei um passo à frente dela
e devorei aquele sim

então restou eu, sujeito e pronome,
no fim do caminho
com a galinha dentro de mim