segunda-feira, 28 de fevereiro de 2011

Leminski



"Apagar-me
diluir-me
desmanchar-me
até que depois
de mim
de nós
de tudo
não reste mais
que o charme"

Presentes

No sábado não ganhei só uma noite deliciosa, mas vários livros. Num deles, "guia politicamente incorreto da história do Brasil" - haha, "a sua cara!", ela disse - tinha como dedicatória, no final: "dar um livro não é presentear, dar um livro é fazer um elogio". Eu e meu ego concordamos, ok, Rafa?
Além disso, é muito bom adicionar à estante "Toda a poesia", do Ferreira Gullar, assinado por uma professora de português tão inesquecível quanto a Bia. Futura Doutora (quase!), ninguém melhor do que vc para presentear "toda a poesia"!

Deixo, então, o poema que provavelmente motivou o presente e só me traz boas lembranças: ouvi pela primeira vez no primeiro sarau que frequentei e declamei pela primeira vez no colégio mais querido da minha vida, no primeiro sarau que organizamos.

Assim, Cantada

Você é mais bonita que uma bola prateada
de papel de cigarro
Você é mais bonita que uma poça dágua
límpida
num lugar escondido
Você é mais bonita que uma zebra
que um filhote de onça
que um Boeing 707 em pleno ar
Você é mais bonita que um jardim florido
em frente ao mar em Ipanema
Você é mais bonita que uma refinaria da Petrobrás
de noite
mais bonita que Ursula Andress
que o Palácio da Alvorada
mais bonita que a alvorada
que o mar azul-safira
da República Dominicana

Olha,
você é tão bonita quanto o Rio de Janeiro
em maio
e quase tão bonita
quanto a Revolução Cubana


Ferreira Gullar

quinta-feira, 24 de fevereiro de 2011

Do gosto e da língua

Nunca gostou de pontos. Nem quando esboçou seus primeiros poemas, tampouco quando caiu de bicicleta naquela tarde cinza.
"O ponto é a menor parte da reta", aprendeu na escola. O desgosto foi maior ainda: nunca foi reta. Nunca nem soube desenhar uma reta, pra falar a verdade. Gostava das curvas, ouvia com prazer Elis cantar Roberto, na estrada de Santos. Admirava o desenho dos corpos - arredondados, fartos, ou, por vezes, como violões, a desfilar em orquestra - gostava do balanço dos andares, do rebolado, que circula o ar que amacia.
Quando começou a frequentar as aulas de inglês, descobriu que "retos" também eram os regimes ditatoriais. Nunca gostou de regime. Desde a infância, acostumou-se a comer sem pudores nem vírgulas.

Nunca gostou de pontos.

Nem quando o vazio pediu por reticências, tampouco quando algum fim se aproximava. Na escola, construia períodos longos, típicos do gênero narrativo, evitando a todo o custo a triste chegada daquele maldito. Sofreu com a laconicidade das dissertações, no começo. Por outro lado, sempre gostou dos inícios! Porque o começo é curvilíneo e ela gosta das curvas. É uma daquelas descidas, nas quais o carro acelera e faz frio na barriga.
Nunca gostou de frio. "Frio só é bom no início", ela dizia.
E sempre gostou de dizer. Como falava! Amadureceu aprendendo a cultivar o silêncio, de tempo em tempo.
Nunca gostou do tempo. Não conseguia desvincular dele a imagem de Cronos, que até os próprios filhos engoliu. A cada ruga, sentia mais próxima a saliva do Grande. Não conseguia abstrair, beijar o tempo, sentir prazer em ser engolida. Era uma cabeça dura.
Certa vez, quando repetia para um grupos de amigos a velha metáfora do comedor de criancinhas, responderam: "que delícia deve ser a língua de Cronos, com todo o tempo do mundo". Piada safada. É, ela gosta disso.
Seus gostos azedam ou adoçam, a cada aniversário. E, a cada ano, ao menos um ponto é necessário: aquele que ajuda a compor a reta que deságua na garganta de Cronos. Mas, no meio dos dentes afiados do tempo, há uma língua sem hora.
Aproveitemos!

quinta-feira, 3 de fevereiro de 2011

A linha tênue

Pingando, encontrou um hotel na beira da estrada. Atravessou o corredor, seguida pelo barulhento roçar da bota de borracha, molhada, no piso de madeira.
Finalmente, pára de encontro ao quarto. No fundo do silêncio, a vizinha geme: chove em mim.

Podia ser poesia, mas é só goteira.