terça-feira, 27 de dezembro de 2011

Café com estímulo

Para João, com quem dividiria minha cama.

Hoje foi meu primeiro dia de férias. A chuva não parou um minuto e a primeira frase que ouvi quando acordei foi "hoje tá pra você". Não sei se entendi, falei, é claro que estava pra mim, primeiro dia de descanso, tão cansada - mesmo quando ganhei um puta recesso ainda me faltavam alguns resultados, foi mesmo uma grande pressão, mas coube até uma bebedeira de vez em quando, você bem sabe, veja só se eu ia aguentar sem uns copos em volta de uma gente bonita. Então ela me olhou e disse "você não sabe do que gosta".
Ela falava da chuva. Merda. Esqueci que disse a ela que gosto de chuva, eu sempre esqueço dessas delimitações, porque alguns dias ensolarados são tão bonitos, e eu com essa mania de achar tudo muito bonito, puta que pariu, agora ela vai pensar que não tenho palavra. Foda-se. Talvez não seja da chuva que gosto. Talvez tenha sido só aquele dia chuvoso, quando saímos de roupas quentes e entrelaçamos as mãos sob a desculpa do frio. Isso. Talvez eu goste das mãos, sabe-se lá, das desculpas, do quente que o frio deixa aparecer e o calor afasta. Não tanto dessa água.
"Eu gostava quando disse, agora parece comum". Debrucei a garrafa de café na borda da xícara e, no silêncio, a enxurrada de insônia fazia coro com o barulho da chuva. Ela me olhava séria e a melhor forma de sustentar aquele olhar foi recusar o açucar. Eu não ia dar esse mole, melar meu café da manhã daquele jeito que faço quando ninguém vê.
"Quer dizer que você é disso?" Fiquei confusa. O café descia difícil, mas eu fazia força para adoçar gole a gole, com uma doçura que o orgulho guarda lá no fundo e você nem sabe, mas serve pra essas e outras - de açucar eu conheço.
Anote aí, meu querido: são açucarados também alguns teimosos. E porque o são, tão resistentes, enterram fundo esse sabor. O gosto que fica nessa teima você conhece; é o tempero desse doce que é velado e dá vontade de lamber. É o mesmo desejo que lembra: somos mais teimosos do que eles.
Pois bem, voltei à pergunta dela disfarçando as curvas desse passeio:
"Se sou disso, de beber café amargo?" Talvez ela não tenha visto que eu suprimi o açucar, resolvi sublinhar.
"Disso, de acordar achando comum, a chuva, o amor, o que era importante um dia".
"Eu não disse isso".
"Mas é assim, não é? Você se cansa fácil".
Ela arrumou o jornal nessa hora. Queria te dizer por qual motivo, mas não sei. Se foi para desviar o olhar e manter as mãos ocupadas, ela até conseguiu, porque eu esperei aquele barulho acabar pra dizer o que você já sabe:
"Eu me canso." Ganhei de volta um olhar sobressaltado, de lindas molduras arqueadas que aguardavam o complemento: "Mas não é fácil".
Ela parecia descrente: "Você esperou a chuva por semanas, fazia um calor infernal... eu não sei o que é fácil pra você".
Então contei a ela a história do cara da biblioteca, lembra dele? Eu sempre passava correndo, mas nutria pelo sujeito uma simpatia gratuita, dessas que me são tão raras que agarro. Sempre que tinha algum tempo, parava alguns minutos para conversar com ele, que, por sua vez, sempre que podia implicava com a minha pressa.
Um dia, me perguntou: você é uma pessoa paciente? Achei graça da pergunta, é possível que tenha franzido a testa antes de responder: sou disciplinada; tenho paciência quando preciso. Ou, gratuitamente, quando o caminho me dá prazer.
"Quer dizer que quando você espera de bom grado, tal qual suportou o calor pensando nos dias de chuva, é porque essa espera é prazerosa e, por vezes, ainda mais prazerosa que o objeto de desejo?"
Linda e perspicaz. Desconversei:
"Quer dizer que todo mundo dormiria em mais casas, se soubesse antes como são bonitas as perguntas de uma mulher pela manhã."
Droga, falei de novo. Falei de novo que acho bonito, esse senso estético é de foder, porque eu achei bonito mesmo - e por isso falei, oras - só que agora vou ter que pensar duas vezes antes de dizer por aí que gosto de dormir sozinha.
Completei:
"Quer dizer que é preciso estímulo; é o pescoço da vida. Por isso se espera, por isso se cansa, por isso se bebe café".
Em silêncio, ela sorriu; linda e perspicaz.
A chuva ainda caía com força, matando a sede daqueles que cansam.

O tal do orgulho hetero

e a quantidade de besteiras que se cospe por aí...

http://naotenhopreconceito.tumblr.com/post/7475690206/parem-de-causar-fdps-orgulho-hetero-mas#notes

(não tive saco pra descobrir como põe o link direto, então, se interessar o tumblr que tem uma ironia fina e não é piegas, seja legal com ele, copie e cole no navegador).

sexta-feira, 23 de dezembro de 2011

O que a língua faz com as pernas

três pares de pernas
perambulam
pelo quarto

é madrugada;
a noite chupa
o vento
geme
a luz da lua
aquece

os três pares de pernas
ainda perambulam
por um quarto
que flutua
agora
vê;

a 8 pés de altura
voa o quarto
sem parede!
sem janela!

olha,
como mexe;

esse quarto
sem tranca
sem sentinela
enlaça a trança
dessas pernas

num rasante,
por sobre uma viela
param os pares
quando ouvem a baderna:

"vê, como é farto!
são três pares de pernas
que perambulam
pelo quarto!"

"mas que quarto?" - pergunta o leitor

"que quarto flutua?"

"que quarto não tem parede?" - esbraveja, indignado

pois justamente a ele -
e a mais alguns,
que não saíram
das cavernas -

responde o povo
em coro:

"meu senhor,
o quarto era mais um par de pernas!"

domingo, 18 de dezembro de 2011

Humano, demasiadamente humano

Pois é, Drummond, o mundo é grande e cabe nessa janela sobre o mar.
o mundo é grande
e eu também canso.


"O amor deseja, o medo evita. Por causa disso não podemos ser amados e reverenciados pela mesma pessoa, não no mesmo período de tempo, pelo menos. Pois quem reverencia reconhece o poder, isto é, o teme: seu estado é de medo-respeito. Mas o amor não reconhece nenhum poder, nada que separe, distinga, sobreponha ou submeta. E, como ele não reverencia, pessoas ávidas de reverência resistem aberta ou secretamente a serem amadas."
(Friedrich Nietzsche, "Humano, demasiado humano", Cia de Letras, p. 289, aforismo 603, ano 2001, São Paulo)

ISSO SIM

_ Voltei.

_ Você fabricou a cerveja, né?

_ Não, é que passei no banheiro.

_ E não chama?

sexta-feira, 16 de dezembro de 2011

Dedilhando entrelinhas

só dedos
não são nada
mais que dedos
detidos
num continente de
corpo e delito

(dedos reclusos
não devoram
como um dedo
perito)

um bom dedo
começa na boca
e na voz
rouca
ao pé do ouvido

(um dedo só
não é dedo o bastante
se esquece de respirar)

o bom dedo
morde

o pescoço
distrito capital
nesse descaminho
é o endosso e o isqueiro
que inflama o olhar vizinho quando grita:

o bom dedo é um corpo inteiro

quarta-feira, 14 de dezembro de 2011

Cruzes credos

Um trio de marombeiros cantando a bíblia na rua do ouvidor. Horário do almoço, sol. Imagens difíceis de esquecer.

sábado, 3 de dezembro de 2011

Segredos de liquidificador

(1)

Fala de você.
Ou do meu sutiã.

(2)

O sutiã está aqui, dentro da sacola em que o coloquei. Imóvel e obediente, como é próprio dos sutiãs.

Eu, por minha vez, não sou imóvel, menos ainda obediente. Falo pelos cotovelos, durmo na hora errada, faço sexo de madrugada e tenho sono por todos os poros.

Tentando dar conta do mundo racional, aquele que exige provas, horários, entrada-saída, dias contados, horas infindas. Depois ensaio de férias, chatice de natal (ainda bem que tenho um monte de amigos comunistas que adoram criticar isso...me sinto melhor assim).

Agora correndo pra tomar banho/lavar cabelo/secar cabelo/ torcer pra não ter insônia às 2 da manhã, pois trabalho às 7.

E vc?

Saudade!

(3)

Eu tenho sexo pelos poros e sono pela madrugada, mas estou aqui - em
horas infindas - imóvel e obediente, como é próprio dos dias contados.

Falo por minha vez, às vezes na hora errada, mas tenho cotovelos
obedientes, que tentam dar conta do mundo racional. (Não doem).

Depois da chatice, ensaio de entradas-saídas, aquele que fala por
todos os poros e exige provas de horas infindas e sutiãs obedientes e
insônia depois e agora, correndo;

Torcer seu cabelo, pra não ter mais sutiã às 2 da manhã.

A saudade está aqui, dentro da sacola em que a coloquei.

quinta-feira, 1 de dezembro de 2011

Artilharia pesada para a hierarquização etário-intelectual

...: esse menino sabe o que da vida? tem quantos anos? 20? manda ele ficar quieto

...: é... mas ele estuda filosofia

...: ah tá... então deixa falar.

Ô sorte!

(descendo a escada, escuto o diálogo entre uma histérica e um sacana)

Ela, aos berros: Mas você é muito irritante! Muito chato! Vem cá: você tem namorada??
Ele: Três. Tá bom pra você?