sexta-feira, 29 de julho de 2011

Descongelando o passado

Brincando de continuar o conto "Venha ver o pôr-do-Sol", da Lygia Fagundes Teles:

E Ricardo desceu a ladeira, como quem deixa um pedaço de si lá em cima. Um pedaço podre, rejeitado. Um pedaço que, apesar de não lhe servir mais, seu corpo insistia em regenerar.
Mas essa era a sua vez de rejeitar, de fazer sofrer. E assim seguiu, vendo o morro crescer sobre suas costas aliviadas, e ao olhar para trás, contemplava cada paralelepípedo lavado pelo orgulho que pingava no chão. Lá havia brilho. E pela primeira vez, depois de anos, sentiu-se brilhante de novo.
Num último gesto, movido pelo entusiasmo, Ricardo levou a mão ao bolso à procura da chave que acabara de arrancar bruscamente da fechadura. Desejava brincar com a sua mais secreta comparsa, e acariciá-la ao mesmo tempo em que esta percorria seus dedos, ora girando, ora mudando de mão. Certamente faria isso, se algo encontrasse sob sua roupa.
Então um novo homem, agora provido de coragem até mesmo para vasculhar os bolsos vazios – ausentes de dinheiro, como toda a sua vida, presentes de vazio, como todo o seu corpo – se volta para a colina, que antes brilhava num misto de Sol e orgulho, e percebe que lá havia um brilho diferente; o que via a todo o tempo era apenas o brilho da chave que deixou pra trás.
Uma nova subida recomeçava e a respiração ofegante já apontava os sinais de cansaço. Já no topo da ladeira, recolheu a chave com cuidado, colocou-a no bolso e apalpou, para ter certeza. Sim, seu tesouro estava bem guardado. Com um leve sorriso de satisfação, olhou em volta; crianças não mais brincavam de roda. Decidiu apreciar o Pôr-do-sol que se iniciava. Diante de tal espetáculo, absorto em suas lembranças, Raquel lhe invadiu o pensamento, e pela primeira vez se arrependeu.
Estivera frente a frente ao maior amor de sua vida, e fora precipitado. Arrependeu-se de não ter tentado uma reaproximação, um beijo se quer. E ela, o que faria? Não poderia ficar ali pensando nas possibilidades. Sua boca clamava por um último beijo, apenas.
_ Raquel, meu bem, como pôde cair nessa brincadeira infantil? – disse Ricardo, pela fresta da porta.
_ Vamos... Seu cavalheiro chegou para te salvar! Perdoe-me, meu amor, mas sempre quis ser o herói. – e abriu a porta – Sonho de criança, você sabe como é... - E entrou.
Raquel estava deitada, ainda encostada às grades. Suas mãos a apertavam, como se pudesse quebrá-las apenas com um pouco mais de esforço. Estava fria, sem marcas, sem sangue, sem beijo, sem nada.
Ricardo, frustrado por sua precipitação, quebra a capela num acesso de raiva, observado por Raquel, contrastando a cena em sua mais profunda serenidade. Ele beija de leve seus lábios frios e quase sorri ao lembrar que ela dizia ter o coração forte, para se opor ao dele. Quanta ironia numa vida, Raquel na verdade, tinha coração fraco.
Então, guiado pelos últimos raios do Pôr-do-Sol, lembrou-se de que não lhe restava nada mais a não ser a vista. Subiu na lápide mais alta e passou a observar.
Durante toda a sua vida, Ricardo sempre quis o que estava no topo, e só observou. Tinha, agora, uma oportunidade única de recuperar tudo o que havia perdido. Então, sem dinheiro, diante do mais valioso espetáculo, não hesitou em pular pra pegar.
(primeiro semestre de 2006)

(com carinho e saudade)

segunda-feira, 25 de julho de 2011

Gosto de dirigir

eu poderia resistir
a qualquer curva
e resisto
mesmo
quando passam por mim
no curvilíneo Rio de Janeiro
curvas perigosas

eu poderia resistir
e resisto
às imperativas categóricas
que, rebolativas,
são tesão por dever
e confundem os juízos
poéticos
a priori

eu poderia resistir
e resisto
aos incêndios dessa cidade
às pequenas explosões
que te tomam de assalto
e derrubam do salto
os antisociais

há fogo demais nesse asfalto
um fogo de saias
que faz calor de verão
que explode os bueiros
e conclama os bombeiros
à revolução

vibro com essa chama
e resisto
a esse risco flamejante
às curvas sinuosas
temperadas pelos
parágrafos
de Kant

mas passa o tempo
eu acelero
você transpira
só o que me pára
é capotar numa mentira

camuflada ali
no meio do caminho
onde nasce e desemboca
o futuro desse flerte
carioca

sábado, 23 de julho de 2011

23 de julho: Dia oficial do porre

Hoje acordei com a ligação de uma amiga e provavelmente atendi com a delicadeza típica de quem é acordado, mas o que ouvi do outro lado foi muito mais cortante: "Caramba, Tainá, a Amy morreu." Sem mais: grande perda artística. Fiquei sinceramente comovida, porque penso que a Amy Winehouse foi, no mínimo, uma das maiores cantoras da década. Decidi na virada do ano ir ao show dela aqui no Rio e hoje me sinto privilegiada. Como disse um amigo, "pelo menos ela conheceu Santa Teresa".

O que importa é que, falo sério, a partir de hoje, dia 23 de julho é o dia oficial do porre. Existem outros 364 dias para a Rehab.

You sent me flying foi a trilha sonora do dia:
http://www.youtube.com/watch?v=2d30k1EWWOc


(você não vai lembrar, mas lembro da gente, com a cabeça no olho do furacão e alguma tristeza no peito, sozinhas no silêncio noturno de uma praia ouvindo essa música. ouvindo essa mesma música várias vezes. que bom que existe jazz com mar para o trágico da vida e memória, pra temperar o presente).

domingo, 17 de julho de 2011

Vontade de tempestade

quando chove em mim e eu transbordo, também o texto se molha. minha alma encharca e pinga eu demais nas entrelinhas. elas pesam.
que pesem.
pouco me importa que essas letras úmidas terminem mofadas, não pelo tempo, tampouco pela gaveta, mas de tanto que carregam do meu eu-afogado. de tanto que me carregam, de tanto eu que essas linhas levam, coitadas.
e são mesmo assim, tão passivas, tão dispostas. basta que me importe em escrever o que quer que seja, numa perspectiva tradicional de organização, que elas surgem. paralelas e constantes, até a perfuração do ponto final. são, as linhas, reféns de qualquer um, de contrato a poesia. de lista de compras a caderno de caligrafia. não importa.
meu bem, só me importam as linhas porque, quando chove em mim, eu transbordo. temo que só por isso elas existam. mas eu disse que temo? pois eu temo porque não gosto de transbordar, você sabe.
transbordo porque quando um, em mim, mil. não há gota, não há um gole, um bombom, tampouco há metade de uma afetação: há dilúvio.
e você, que me afeta, é puro ar em falta, rarefeito, que beija em apneia e retoma o fôlego no perfume dos pescoços onde me procura.
você é nuvem, que passa delicada pela minha janela, dançando no ritmo do vento. acena do céu com braços de algodão e derrete em seguida, na minha frente, para reaparecer na janela de outros olhos. que seja. que seja breve e que passe. mas passe pela minha janela.
sabe, você é nuvem condensada, vez ou outra. falo daquela enorme aparição cinza que se forma no final dos dias quentes ou num inverno atípico no Rio de Janeiro, como o que estamos vivendo por agora. sei que o tempo andou fechado por aqui, mas me pergunto se você viu a lua linda por esses dias. era um céu limpo, em plena quinta-feira, de um azul intenso, que contrastava, sacana, com o brilho desse satélite libidinoso, peter pan das luzes.
mas dias como esses são claros demais. há que ter meia luz, há que saber ser nuvem condensada, meu bem. saber fechar o tempo e encher a cidade de um cinza que sinaliza seu desejo de tempestade.
até que, por fim, você chove em mim.
e eu transbordo.

domingo, 3 de julho de 2011