sábado, 26 de novembro de 2011

domingo, 20 de novembro de 2011

Chega de fantasia

Acordou na quarta-feira com a última lembrança no pescoço. Deslizou a mão pelos cabelos, mexeu as pernas, afastou o lençol e sentou na cabeceira da cama, com a mão na testa. A cabeça, como doía: maldito uísque vagabundo.
No caminho para o espelho ainda ouvia o rock dos Mutantes, "veja como vem, veja bem..." e sentia estourar a cada passo a frase da noite: "não vá se perder por aí", os meninos avisaram.
Escolheu com firmeza a torneira de água fria e lavou o rosto, com a certeza de que precisava de mais do que um café para acordar, por hora.

Empacotaram os sonhos há quase um ano. Fazia um tempo frio no Rio de Janeiro e as chuvas, cada vez mais frequentes e torrenciais, levaram com a correnteza os pacotes de futuro que não cabiam mais na cama.

(continua)

segunda-feira, 14 de novembro de 2011

Ah, lumiar...

Um Dois, três. Verde. Rede. Rio. Nós.
Dois. Mutuca. Cubano. Roupa de anão. Mais um, dois.
Alambique. Melaço. Vovô com cajado. Dois. A capoerista.
Nós.

segunda-feira, 7 de novembro de 2011

Isto não é uma ervilha

Era uma ervilha bem verde no prato e tantos talheres em volta. Tinha garfo, faca, dentes, e uma ervilha no prato. O copo transbordava, havia também mais garrafas sobre a mesa e mais ainda guardadas no armário. O forno abrigava um banquete preparado com o mais precioso requinte, mas sua fome era de ervilha. De uma ervilha. Daquela ervilha verde musgo, já fria -ora, que diferença faria - cambaleante na porcelana que espelhava de tão clara.
Já havia gozado muito da infinitude daquele branco. Salivava ao lembrar daquelas tardes, quando dedicava o tempo que fosse a contemplar aquela ausência que se exprimia em porcelana.
Nunca viu nada mais livre. Conheceu a liberdade medindo seu reflexo no fundo do prato vazio. Apaixonou-se pelo paradoxo da brancura; reunião de todas as cores e desfile de cor nenhuma. Namorou a ausência de qualquer coisa que limitasse a possibilidade daquele prato, a não ser ela mesma.
Acordou ofegante no meio de uma madrugada e decidiu: não é um prato. Sabe-se lá o que viu naquela noite, pouco falava, pouco se sabe sobre o que fomentou esse seu comportamento. No entanto, é certo que falou com todas as letras, buscou a porcelana na cozinha e pendurou na parede do quarto. Ficou bonito. Mas não era um quadro.
Por vezes guardava no criado mudo, ao lado da cama. Gostava de acordar ao lado daquela liberdade, sentir o cheiro daquele ser que era incapaz de se auto-limitar. Era ela quem o fazia ser o que fosse.
Passou dias fugindo desse jogo de determinar. Na esperança de que ele fosse coisa nenhuma, maldizia toda a noite sua consciência feroz, devoradora de sujeitos, objetos, possibilidades.
Elegeu a ausência como fuga do cárcere da definição: que tudo faltasse àquele ex-prato, àquela coisa que era qualquer coisa agora.
Lugar certo já não tinha, aos poucos abandonou sua finalidade; no início ainda era uma interrogação, mas logo passou; despercebeu-se.
Dia a dia lapidou a alma na medida daquele nada. Incorporou a infinitude daquele ponto branco, até a tarde em que sentou à mesa e havia uma ervilha no prato. Parecia deliciosa e bela a imagem daquele verde no branco da porcelana, mas tão imperativa. Media o tamanho do incômodo; era um buraco na alma.
Observava curiosa a existência daquele caraço inesperado, atordoante. Em febre, devaneios ganham letras:

Isso não é uma ervilha. É uma paixão.

quarta-feira, 2 de novembro de 2011

Promessas cretinas

Tenho lembranças de ter prometido a você que escreveria um texto doce;
âmago da poesia clássica, segredo dos romances, bossa nova, fim de tarde,
olhar de criança; flores.
Quantos doces já atravessam os dias, quando arregala os olhos para os quadros da vida.

Não que devesse,
mas quantos textos doces já não te escrevi, querendo, sem querer, em silêncio, em olhar,
em palavras de afeto que explodem
descuidadas,
por entre as farpas que trocamos.

Farpas flamejantes, que inclinam o leitor desavisado a pensar:
"como machucam!",
mas que bobagem,
são tão pequenas farpinhas...,
não diga que minam sua armadura, beliscam seu coração.
Que empreendimento ofegante para tão delicado azedume.

Claro que é possível
que a pouca potência das farpas que trocamos more na espessura do orgulho;
grosso.
Ainda assim são pontiagudas, e espetam e acumulam o açucar no fundo do copo,
grosso.

Quando prometi que te escreveria um texto doce,
tive medo.
E porque ainda tenho, temperei essa ante-sala vestida de eu-lírico,
com raspas do chocolate amargo que mordi,
uma dose de pequenas mentiras,
carapuças sinceras, paradoxos, contradições
e o pulsar
desse seu sorriso
pintado de sarcasmo
mas
me leve a sério,
diga a ele
que me leve a sério.

ou que só me leve, esse sorriso
enquanto eu quero ir.