terça-feira, 24 de maio de 2011

Mordida de escorpião

Não é segredo que minha principal inspiração, quando algo me toma de vontade de escrever, é o outro. Gosto de observar pessoas. Gosto muito!

(Gosto de pensar que a senhora já idosa, sentada, comendo seus biscoitos de nata e tomando chá por volta das 5, nem sonha que, do outro lado do Café, penso nela. Observo seus cabelos, muito brancos, bem penteados, fazerem par com suas marcas e a forma como segura a xícara.
Observo o modo como olha pela janela e pisca lentamente, como quem pressente a chegada de uma lembrança. Tento observar seu passado, mas é tão difícil. Senhoras desse tipo carregam segredos protegidos pelos cadeados de segredo. Possuem a graça das bonecas russas: guardam em sequência fragmentos de si. Mais: guardam em si outras dessas. São baús, não baixam a guarda. Guardam o passado a sete chaves, como aquele segredo guardado em cadeado de segredo e, quando se abrem um pouco, aos que têm sorte, eis que está lá dentro outra senhora, um pouco mais frágil, talvez sorrindo para o garçom e dando boas gorjetas.
Assim são as mulheres fortes; tal qual bonecas russas: com charme, vê-se dentro delas delicadeza em série, até caber na palma da mão.)

Volto a dizer, depois da necessária interrupção dos parênteses, que, em matéria de inspiração, sou muito pouco egocêntrica. É claro que você pode argumentar: "narciso acha feio o que não é espelho". Mas, ainda que a forma como exponho o outro tenha relação com o modo como me apresento, não muda o fato de que observo e me interesso por isso.
Comecei esse discurso porque pretendia falar sobre mim até a senhora ao lado me arrebatar. Perdi o interesse inicial, o texto mudou de foco; eis o devir. No entanto, alguma coisa sobre o que me propus inicialmente persiste: terminei há poucas semanas "Cem anos de solidão". Tive certa resistência para começar; o livro é longo e tenho uma série de livros longos que me prometi que leria antes de encontrar com o Gabriel García Marquez. Não obstante, devorei e foi uma das coisas mais delicadas que já li. Poesia pura, em prosa.

Lá pela metade do livro, parei num trecho, dos mais intensos, que me pegou pelas pernas. Melhor do que surpresa: me pegou desprevenida, tomando um drink antes de ir pra cama - mania de quinta-feira.
Depois dele, digo: mais gostoso do que um diálogo intenso, é a frase que entra sem doer e você não percebe quando corta, mas quando já está dentro.

Pois:

"- Porra! – gritou.

Amaranta, que começava a colocar a roupa no baú, pensou que ela tinha sido picada por um escorpião.
- Onde está? – perguntou alarmada.
- O quê?!
- O animal! – esclareceu Amaranta.

Úrsula pôs o dedo no coração:
-Aqui."

Quando li, fiquei em silêncio por algum tempo, digerindo. Senti uma vontade muito grande de dizer algo para Úrsula. E para tantas outras Úrsulas, com escorpião no coração. Passei um tempo sem a resposta, até que o trecho me voltou à cabeça enquanto lia Nietzche, há dias atrás, e me deparei com uma máxima que também é minha:

"... em Fontenelle, por exemplo, a quem certa vez puseram a mão sobre o coração, dizendo: 'O que você tem aqui, meu caro, também é cérebro'."


(Quando pagou a conta, saciada, pareceu sorrir pra mim, a senhora. Sorriu com o canto da boca e nossos olhares se cruzaram, num segundo desse dia que é qualquer na vida dela. Olhando novamente, enquanto a vejo fazer sinal para um táxi, percebo que me sorriu porque sabe o que é ser inspiração.
Penso, com vigor: como é bonito esse ar de segurança, próprio de quem encara o desconhecido e sorri. Talvez ela, senhora sabida, tenha visto qualquer fragmento dela em mim. Talvez sorria dessa maneira toda a vez que reconhece, num segundo qualquer da sua vida, uma mulher que não baixa os olhos para um olhar intenso.

Sem mais talvez: eu, desconhecida, também sou boneca russa. E um pouco de escorpião.
Por isso, qualquer coisa que eu tenha aqui, meus caros, seja paixão em potência ou segredo, em cadeado de segredo, é sincero, mas também é cérebro.)

terça-feira, 10 de maio de 2011

Do perigo e sobre

Quisera eu que andasse com blusa de caveira e um aviso no pescoço. Tal qual os frascos dos venenos do laboratório, quisera eu poder dar nome às tantas entorpecências que me causa.
Quisera poder embalar essa boa droga que você é e vender seu charme pelas esquinas, como se não me importasse com quem te compra. Como se quisesse compartilhar com os pobres que andam sem prazer pelas esquinas a pontinha do gozo que me desponta. Quisera eu não te querer por inteiro; quem me dera que bastasse querer meio.
Quisera eu que, quando cruzasse as pernas, um alarme sonoro gritasse e, tal qual uma sirene que anuncia a urgência, me arrancasse do estado de desatenção que a pressão das suas coxas acomete.
Mentira. Quisera nada.
Quisera eu que cruzasse de novo, isso sim. E em silêncio, com esses olhos de sirene que só você, gritando uma urgência que o calor já anuncia. Quem dera.
Quisera eu que fosse meu esse seu ar de quem quer mais. Porque, em mim, já jaz o ar de quem quer tudo.
Quisera eu que a música baixasse, a luz não fosse tanta e se conservasse ainda mais esse mistério; quisera eu ser penumbra e te deixar em tato e só. Quem dera que me tateasse às cegas e traçasse em mim o caminho em que se perde.
Quisera eu que me pedisse mais.
Como quem tem sede, muita sede, e bebe sem respirar a água que põe com pressa no copo - metade ambiente, metade gelo. E, quando termina, diz de uma vez: Outro. Quisera eu que, sem pressa, mas com tamanha avidez bebesse meu corpo - metade serpente, metade zelo.
Quisera eu mais duas garrafas, três, pra ver descer pela garganta os nãos que restam, com os segundos e os ponteiros do relógio. Ver sua boca colorida no último gole, denunciando a liberdade.
Quem dera que o passado perpasse e permita que o presente enfeitice.
Quisera eu que me desse em fogo a outra face.
E que me desse mais.
Com vontade. E de novo.
E me desse todo o dia, um pouco além desse perigo.

sábado, 7 de maio de 2011

Loucura, chiclete e som


"Você não sente nem vê
Mas eu não posso deixar de dizer, meu amigo
Que uma nova mudança em breve vai acontecer
E o que há algum tempo era novo, jovem,
Hoje é antigo, e precisamos todos rejuvenescer

Nunca mais meu pai falou: "She's leaving home"
E meteu o pé na estrada, "Like a Rolling Stone..."
Nunca mais eu convidei minha menina
Para correr no meu carro...(loucura, chiclete e som)
Nunca mais você saiu à rua em grupo, reunido,
O dedo em V, cabelo ao vento, amor e flor, quero cartaz

No presente a mente, o corpo é diferente
E o passado é uma roupa que não nos serve mais

Como Poe, poeta louco americano, eu pergunto ao passarinho:
"Black bird, o que se faz?"
E raven never raven never raven
Black bird me responde:
"Tudo já ficou atrás"
E raven never raven never raven
Assum preto me responde:
"O passado nunca mais"

Você não sente, nem vê
Mas eu não posso deixar de dizer, meu amigo
Que uma nova mudança em breve vai acontecer
E o que há algum tempo era novo, jovem,
Hoje é antigo,
E precisamos todos rejuvenescer."

segunda-feira, 2 de maio de 2011

Escrevo enquanto te espero

Passam pessoas à hora do almoço
com passos de dançarinos
no centro da cidade

passam pernas enquanto te espero
pernas de todos os tipos passarinham:
longas, feias, bonitas, cobertas
pernas provocantes passam
e fazem um charme que não vejo
porque esqueço
enquanto te espero

dançam pessoas à hora do almoço
no ritmo que o relógio grita:
tic tac
tic tac
é o que sussurram os passos
dos que passam no centro da cidade

também faz tic tac em mim
enquanto você não passa
mas, ao contrário das pernas
que têm pressa no centro da cidade
eu pressiono:
coxas cruzadas,
tesas,
porque é o som do tic tac
que desperta o tesão da caneta
com a qual escrevo
enquanto te espero

domingo, 1 de maio de 2011

Aos 13

(Gulosa):

"Ando pela adolescência, bem devagar, para que ela não passe tão rápido quanto passou a minha infância. Quando criança, escutava Cazuza, andava de patins, subia em árvores, lia mais do que comia e no jogo da verdade, minha "consequência" era sempre dar estalinhos nos amigos. Hoje, os patins não cabem mais nos meus pés e as pessoas costumam perguntar se eu não vou parar de comer. Eu ? Bom, eu digo que ler queima calorias."

(Exagerada):

"... O apetite ainda estaria vivo não fosse a mão que me subia.
Orgulhava-me quando nos jantares em família, havia a indagação: não tem namorado não, menina? Adorava nossas reuniões, e era sempre tão espevitada, tão cheia de esperança.
Deixava que respondessem de prontidão: Que nada! Ela ainda é criança!
Pois lá estava eu, infante, diante de um sujeito indecente.
Um eterno e termo enjôo me consumiu por um segundo,
A impressão é de que nunca mais sentirei fome novamente."


(Uma das coisas mais divertidas que me aconteceu recentemente foi descobrir uma pasta de textos antigos num computador que quase não uso mais. Confrontar o passado é uma experiência muito curiosa. Tão curiosa que, a partir dessa reflexão, decidi que as aspas ficariam bem nos textos acima.
Não pretendo, com isso, insinuar que não me vejo em você, garota. Minha citação pretende muito mais respeitar nossas individualidades e reconhecer que o ontem e o hoje são dois eu's de mim.
Claro, seria muito difícil olhar o passado e pensar que contemplo a mim mesma, se eu não reconhecesse tantas semelhanças.
Quer dizer: se houvesse um devir cruel e eu resolvesse virar evangélica, parar de comer chocolate ou vibrar com o casamento do príncipe da Inglaterra, que menina seria aquela? Seria eu?
É claro que mudei muito, mas, posso dizer que, no que escrevi aos 13, reconheço o que sou hoje, em contorno.
Poderia não ser assim. Poderia ser radicalmente diferente e seria muito divertido, inclusive.
Porque somos vários. Em potencial, ao mesmo tempo e ao longo da vida. Sim, minha personalidade se constrói de maneira mais ou menos linear.
Mas, embora eu reconheça a menina de língua ferina que era quando escrevi aos 13, valorizo o múltiplo e o "nada" como possibilidade de definição para o "ser". A cada ano. E mais.)