passei o dia a comandar uma escavação
por todas as entradas minhas:
marcas, linhas, vãos,
e até os cantos que calo
em busca de algumas palavras
que pudesse dizer a esse homem
cujo aposto pode ser
"meu pai"
eu juro que queria ter
um rancor qualquer
e lágrimas
de uma tristeza que te segurasse pelos pés
quando estivesse quase dentro
do meu poço da indiferença.
nunca te falei,
mas rego esse poço todo o dia
toda a vez que encontro
uma existência de padaria
e você nunca viu a cara que faço
quando falam sobre o tempo na fila do pão
porque não sabem nada sobre o silêncio
eles falam
e você só quer tomar seu café
e ver o tempo passar
na borda da xícara que esvazia.
então respira
e joga a fila inteira,
de um golpe só,
lá no fundo do poço da indiferença.
imagina você lá, pai
nadando em meio a vários estranhos
absolutamente desinteressantes
que formariam grupinhos
e cochichariam:
"Parece que ela jogou o pai no poço" - diria um.
então eu te esqueceria a cada dia
porque a indiferença é o hall do esquecimento
e você morreria sempre e mais
entre cônegos, credores , coronéis
e toda essa gente
que não cheira nem fode
e não faz diferença
quando respira na fila do pão.
mas você,
você não,
você foi intensamente covarde
e os intensos nunca caem no poço, pai
essa sua falta era real, era você
era presença tua
e eu não sei mais qual é
o barulho dos seus sapatos chegando em casa
porque só te conheço pela ausência
o que encontrei em mim
pra te dizer hoje
é que você é um grande sacana, meu caro
mas eu tô me fodendo, pai
e te agradeço
sincera
e calorosamente
por ter me gozado.
3 comentários:
Sacana também, mas terno...
Você escreve nos vãos, nas beiras, nos desfiladeiros, nos precipícios. A pedra prestes a rolar.
E rola.
Mas Sísifo a toma de volta, etc, etc...
Você escreve sempre com a palavra escancarada, inteira (meias palavras são para os fracos, o que, definitivamente, não é o seu caso).
Gosto muito da sua escrita de cara lavada, encarando o leitor sempre de um modo que ele não tem como desviar o olhar. Depois, ele que resolva o que fazer com o beco no qual ficou encurralado, mas você disse o que queria.
Gosto muito disso.
A poesia também pode ser violência. Ou uma resposta à violência, ou à memória, ou às entranhas, ou ao vômito.
Na sua escrita, a poesia é o que quiser.
Adorei. Obrigada. Beijo
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