segunda-feira, 29 de agosto de 2011

Calor agosto

hoje fazia um calor desgraçado nessa cidade, calor do caralho mesmo, daqueles que pipocam, que parecem fritar o asfalto e parecem agitar todas as pernas, as pessoas, parecem que vão fazer o centro da cidade explodir. e aí eu tinha que fazer um monte de coisas no centro da cidade porque, você sabe, segunda-feira é o meu dia de ir ao centro e eu prefiro fazer isso quando o dia é cinza. eu gosto de dias cinzas porque eles não esperam nada. um calor como esse parece sempre esperar alguma conversa sobre o quanto está quente ou que você ponha um biquini, deixe de ser preguiçosa e vá ler na praia. em dias cinzas, quando passa alguém fumando você acha bonito, você até fuma junto, porque esses dias te pedem um pouco de fogo. dias quentes como os de hoje já têm fogo demais. mas aí eu vi um bonitão de terno passando naquele amarelo todo que era o sol que fez mais cedo e pensei "cara, não sei como ele consegue fumar nesse calor". nem sombra está, veja só, e eu devo ter olhado demais, porque ele piscou e ofereceu um cigarro e eu até acompanharia se tivesse cinza, mas era meio dia e eu disse não, esse tempo já me traga. aí eu queria ir à pé, porque sempre há muito o que pensar, só que eu peguei um ônibus. não consegui sombra e fui fritando, vendo todo mundo muito suado, algumas calças puxadas pra cima, num improviso provinciano corajoso, desses que a gente inveja. quando já quase descia, eu vi algo muito azul entrando pela porta do meio - sim, há portas do meio em alguns poucos ônibus de agora. eles enfiam por ali os cadeirantes que esperam horas ao dia por um transporte desses para serem levados pra vida - aí, como eu disse pra você, vi alguém muito azul entrar no inferno sem ar condicionado onde eu estava. era um sujeito negro, bem negro, e tinha uma barba rala branca. ele vestia um uniforme cheio de picolés e eu olhei pra ele e tive vontade de comer a camisa dele, verdade. no lugar reservado para cadeira de rodas, ele deixou uma caixa enorme que carregava junto, toda azul também e mais cheia de picolés ainda. eram de todas as cores que você pode imaginar. então ele se sentou de lado para a janela e fazia muito sol de novo. debruçou os dois braços na caixa gelada e ficou ali, numa elegância só. quando chegou o meu ponto, eu saí de lá de trás, onde eu estava e via de canto de olho, desse jeito mesmo que a gente observa quando não quer que o olho seja visto. atravessei o corredor do ônibus, em meio a algumas daquelas crianças que vivem a eternos 40 graus e têm sempre bichinhos comichando o bumbum. passei por esse mar saltitante que é o fluxo da vida infantil e parei no azul, dessa vez ao lado dele. o sol denunciava as marcas de suas mãos, muito negras, marcas de quem acordou cedo pra ver alguém sorrir. fiquei olhando pra ele por algum tempo e não sei o que deteve mais o meu olhar: se foram as feridas de alguém que vende picolé pra se aquecer quando esfria. se foi o olhar daquele homem azul, fitando a janela, olhando sério a calçada passar. se foi o passado gelado dele, que o sol clareou bem ali na minha frente.

sábado, 27 de agosto de 2011

Rastros de agosto

você me voltou no fim de agosto, esse mês de gosto azedo e travessia caiofernandiana:
há que ter paciência e fé, ele disse. voltou em meio a outras angústias, dessas poucas que não levam o carimbo do seu nome nas entrelinhas: como-amo-essas-angústias-que-não-te-pertencem. detesto sentir seu cheiro em quase tudo o que vivi depois do seu pescoço. quero encontrar dores que não são suas, marcas que você não me fez, segredos que não te contei. quero esquecer nossos planos, enterrar nossos futuros, ouvir nossa música (sim, temos músicas) sem pesar (só-que-ainda-pesa).
difícil seguir sozinha o caminho traçado a torto por duas mãos canhotas, mas chove, a terra renova e o dia é lindo pra germinar.

sexta-feira, 26 de agosto de 2011

É dessas

Mosqueta, vi sua silhueta num livro de Baudelaire. Segue o quadro:

O desejo de pintar

Infeliz, talvez, seja o homem, mas feliz é o artista a quem o desejo dilacera!
Fico louco de vontade de pintar aquela que me aparece tão raramente e foge tão depressa quanto uma coisa bela inesquecível, atrás do viajante levado pela noite. E já faz tempo que ela desapareceu!
Ela é bela e, mais que bela, é surpreendente. Nela o negror é abundante: e tudo o que ela inspira é noturno e profundo. Seus olhos são duas cavernas onde cintila, vagamente, o mistério, e seu olhar ilumina como um relâmpago; é uma explosão nas trevas.
Eu a compararia a um sol negro, se se pudesse conceber um astro negro vertendo luz e felicidade. Mas ela faz mais facilmente pensar na lua, que, sem dúvida, a marcou com sua terrível influência; não a lua branca dos idílios, que parece uma fria noiva, mas a lua sinistra e embriagada, suspensa ao fundo duma noite tempestuosa, empurrada pelas nuvens que correm; não a lua pacífica e discreta que visita o sono dos homens puros; mas a lua arrancada do céu, vencida e revoltada, que as Feiticeiras tessalianas constrangem duramente a dançar sobre a relva aterrorizada!
Em sua pequena fronte habitam a tenaz vontade e o amor à presa. Entretanto, sob esse aspecto inquietante, onde as narinas móveis aspiram o desconhecido e o impossível, brilha, com inexprimível graça, o riso de uma grande boca vermelha e branca e deliciosa que faz sonhar o milagre de uma soberba flor que desabrocha em um terreno vulcânico.
Há mulheres que inspiram o desejo de vencê-las e de divertir-se com elas, mas essa dá vontade de morrer lentamente sob seu olhar.


(pequenos poemas em prosa)

domingo, 21 de agosto de 2011

Acachapante

M: bom, discorria sobre a importância das primeiras aulas que tive
ou, de como a primeira aula é um fator determinante em minha disposição à uma disciplina
a perplexidade e encantamento que tem surgido desse primeiro contato
(fora Lógica, rs)
pq aquilo não é pra mim, definitivamente.

T: rs, concordo
e acho que, precisamente esse termo que vc empregou
"perplexidade"
reflete talvez o q os gregos sentiram
diante da mesma descoberta

M: gata, vc não tem noção do que foi a minha primeira aula no curso, eu nem dormi a noite

T:haha, intenso...

M: fiquei atravessada por essas sensações, e "precisei" escrever uma carta na manhã seguinte
mas tb foi covardia
pq a primeira aula que tive foi de Filosofia e Literatura
e daí o cara 'abriu' a aula com um fragmento da Clarice, ACACHAPANTE.
eu vou te mandar depois

T: nussss
manda por agora... não tem por aí?

M: tenho
leia, e depois discutimos as impressões

Clarice:

----------------estou procurando, estou procurando. Estou tentando entender. Tentando dar a alguém o que vivi e não sei a quem, mas não quero ficar com o que vivi. Não sei o que fazer do que vivi, tenho medo dessa desorganização profunda. Não confio no que me aconteceu. Aconteceu-me alguma coisa que eu, pelo fato de não a saber como viver, vivi uma outra? A isso quereria chamar desorganização, e teria a segurança de me aventurar, porque saberia depois para onde voltar: para a organização anterior. A isso prefiro chamar desorganização pois não quero me confirmar no que vivi - na confirmação de mim eu perderia o mundo como eu o tinha, e sei que não tenho capacidade para outro.

Se eu me confirmar e me considerar verdadeira, estarei perdida porque não saberei onde engastar meu novo modo de ser - se eu for adiante nas minhas visões fragmentárias, o mundo inteiro terá que se transformar para eu caber nele. Perdi alguma coisa que me era essencial, e que já não me é mais. Não me é necessária, assim como se eu tivesse perdido uma terceira perna que até então me impossibilitava de andar mas que fazia de mim um tripé estável. Essa terceira perna eu perdi. E voltei a ser uma pessoa que nunca fui. Voltei a ter o que nunca tive: apenas as duas pernas. Sei que somente com duas pernas é que posso caminhar. Mas a ausência inútil da terceira me faz falta e me assusta, era ela que fazia de mim uma coisa encontrável por mim mesma, e sem sequer precisar me procurar.

Estou desorganizada porque perdi o que não precisava? Nesta minha nova covardia - a covardia é o que de mais novo já me aconteceu, é a minha maior aventura, essa minha covardia é um campo tão amplo que só a grande coragem me leva a aceitá-la -, na minha nova covardia, que é como acordar de manhã na casa de um estrangeiro, não sei se terei coragem de simplesmente ir.

É difícil perder-se. É tão difícil que provavelmente arrumarei depressa um modo de me achar, mesmo que achar-me seja de novo a mentira de que vivo. Até agora achar-me era já ter uma idéia de pessoa e nela me engastar: nessa pessoa organizada eu me encarnava, e nem mesmo sentia o grande esforço de construção que era viver. A idéia que eu fazia de pessoa vinha de minha terceira perna, daquela que me plantava no chão. Mas e agora? estarei mais livre?

Não. Sei que ainda não estou sentindo livremente, que de novo penso porque tenho por objetivo achar - e que por segurança chamarei de achar o momento em que encontrar um meio de saída. Por que não tenho coragem de apenas achar um meio de entrada? Oh, sei que entrei, sim. Mas assustei-me porque não sei para onde dá essa entrada. E nunca antes eu me havia deixado levar, a menos que soubesse para o quê.

Ontem, no entanto, perdi durante horas e horas a minha montagem humana. Se tiver coragem, eu me deixarei continuar perdida. Mas tenho medo do que é novo e tenho medo de viver o que não entendo - quero sempre ter a garantia de pelo menos estar pensando que entendo, não sei me entregar à desorientação. Como é que se explica que o meu maior medo seja exatamente em relação: a ser? e no entanto não há outro caminho. Como se explica que o meu maior medo seja exatamente o de ir vivendo o que for sendo? como é que se explica que eu não tolere ver, só porque a vida não é o que eu pensava e sim outra - como se antes eu tivesse sabido o que era! Por que é que ver é uma tal desorganização?

É uma desilusão. Mas desilusão de quê? se, sem ao menos sentir, eu mal devia estar tolerando minha organização apenas construída? Talvez desilusão seja o medo de não pertencer mais a um sistema. No entanto se deveria dizer assim: ele está muito feliz porque finalmente foi desiludido.

haha

segunda-feira, 15 de agosto de 2011

Querido papai

passei o dia a comandar uma escavação
por todas as entradas minhas:
marcas, linhas, vãos,
e até os cantos que calo
em busca de algumas palavras
que pudesse dizer a esse homem
cujo aposto pode ser
"meu pai"

eu juro que queria ter
um rancor qualquer
e lágrimas
de uma tristeza que te segurasse pelos pés
quando estivesse quase dentro
do meu poço da indiferença.

nunca te falei,
mas rego esse poço todo o dia
toda a vez que encontro
uma existência de padaria
e você nunca viu a cara que faço
quando falam sobre o tempo na fila do pão
porque não sabem nada sobre o silêncio

eles falam
e você só quer tomar seu café
e ver o tempo passar
na borda da xícara que esvazia.
então respira
e joga a fila inteira,
de um golpe só,
lá no fundo do poço da indiferença.

imagina você lá, pai
nadando em meio a vários estranhos
absolutamente desinteressantes
que formariam grupinhos
e cochichariam:
"Parece que ela jogou o pai no poço" - diria um.

então eu te esqueceria a cada dia
porque a indiferença é o hall do esquecimento
e você morreria sempre e mais
entre cônegos, credores , coronéis
e toda essa gente
que não cheira nem fode
e não faz diferença
quando respira na fila do pão.

mas você,
você não, você foi intensamente covarde
e os intensos nunca caem no poço, pai

essa sua falta era real, era você
era presença tua
e eu não sei mais qual é
o barulho dos seus sapatos chegando em casa
porque só te conheço pela ausência

o que encontrei em mim
pra te dizer hoje
é que você é um grande sacana, meu caro
mas eu tô me fodendo, pai
e te agradeço
sincera
e calorosamente
por ter me gozado.

sábado, 13 de agosto de 2011

Insônia

"Olha, eu estou te escrevendo só pra dizer que se você tivesse telefonado hoje eu ia dizer tanta, mas tanta coisa. Talvez mesmo conseguisse dizer tudo aquilo que escondo desde o começo, um pouco por timidez, por vergonha, por falta de oportunidade, mas principalmente porque todos me dizem que sou demais precipitado, que coloco em palavras todo o meu processo mental (processo mental: é exatamente assim que eles dizem, e eu acho engraçado) e que isso assusta as pessoas, e que é preciso disfarçar, jogar, esconder, mentir. Eu não queria que fosse assim. Eu queria que tudo fosse muito mais limpo e muito mais claro, mas eles não me deixam, você não me deixa"










"A vida é agora, aprende. Ainda outra vez tocarão teus seios, lamberão teus pêlos, provarão teus gostos. E outra mais, outra vez ainda. Até esqueceres faces, nomes, cheiros. Serão tantos. O pó se acumula todos os dias sobre as emoções"










Caio F.