segunda-feira, 7 de novembro de 2011

Isto não é uma ervilha

Era uma ervilha bem verde no prato e tantos talheres em volta. Tinha garfo, faca, dentes, e uma ervilha no prato. O copo transbordava, havia também mais garrafas sobre a mesa e mais ainda guardadas no armário. O forno abrigava um banquete preparado com o mais precioso requinte, mas sua fome era de ervilha. De uma ervilha. Daquela ervilha verde musgo, já fria -ora, que diferença faria - cambaleante na porcelana que espelhava de tão clara.
Já havia gozado muito da infinitude daquele branco. Salivava ao lembrar daquelas tardes, quando dedicava o tempo que fosse a contemplar aquela ausência que se exprimia em porcelana.
Nunca viu nada mais livre. Conheceu a liberdade medindo seu reflexo no fundo do prato vazio. Apaixonou-se pelo paradoxo da brancura; reunião de todas as cores e desfile de cor nenhuma. Namorou a ausência de qualquer coisa que limitasse a possibilidade daquele prato, a não ser ela mesma.
Acordou ofegante no meio de uma madrugada e decidiu: não é um prato. Sabe-se lá o que viu naquela noite, pouco falava, pouco se sabe sobre o que fomentou esse seu comportamento. No entanto, é certo que falou com todas as letras, buscou a porcelana na cozinha e pendurou na parede do quarto. Ficou bonito. Mas não era um quadro.
Por vezes guardava no criado mudo, ao lado da cama. Gostava de acordar ao lado daquela liberdade, sentir o cheiro daquele ser que era incapaz de se auto-limitar. Era ela quem o fazia ser o que fosse.
Passou dias fugindo desse jogo de determinar. Na esperança de que ele fosse coisa nenhuma, maldizia toda a noite sua consciência feroz, devoradora de sujeitos, objetos, possibilidades.
Elegeu a ausência como fuga do cárcere da definição: que tudo faltasse àquele ex-prato, àquela coisa que era qualquer coisa agora.
Lugar certo já não tinha, aos poucos abandonou sua finalidade; no início ainda era uma interrogação, mas logo passou; despercebeu-se.
Dia a dia lapidou a alma na medida daquele nada. Incorporou a infinitude daquele ponto branco, até a tarde em que sentou à mesa e havia uma ervilha no prato. Parecia deliciosa e bela a imagem daquele verde no branco da porcelana, mas tão imperativa. Media o tamanho do incômodo; era um buraco na alma.
Observava curiosa a existência daquele caraço inesperado, atordoante. Em febre, devaneios ganham letras:

Isso não é uma ervilha. É uma paixão.

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