domingo, 29 de janeiro de 2012

Notas de um eu-lírico de vestido

É madrugada de mais um fim de uma semana. Apesar de me sentir exausta, a noite de tempestade me convence a adiar um tanto mais o sono. Não é sacrifício: a madrugada é linda, a chuva é linda, e eu ainda tenho fome.
Hoje é sexta, ninguém foi ao mercado. Podia mesmo era ter umas sobrinhas do almoço, o que se fez dele?
Escolho as torradas. Pelo menos tem geléia de amora. Lembrei que almocei correndo na rua, não ia ter comida mesmo. É até bom: a torrada integral me lembra que tenho mãe. E que ela faz dieta. É mesmo muito doce essa lembrança, mas faço votos sinceros de que ela lembre que tem filha em outras circunstâncias. Café amargo é melhor do que torrada integral.
Hoje foi um dia de conquistas: saí de guarda-chuva e voltei com ele. Acredite.
Tenho a séria desconfiança de que sou responsável por uma gorda porcentagem do faturamento dos vendedores de guarda-chuvas do Rio de Janeiro. Eu esqueço sempre. Mas hoje não. O que foi ótimo, porque passei horas esperando um ônibus, protegida pelo meu guarda-chuva poderoso. O que aconteceu foi que troquei os esquecimentos: lembrei disso, esqueci daquilo. Daquilo" é o banco. Esqueci de passar na porra do banco.
No fim das contas, encontrei um táxi com débito, mas ter paciência ensopada seria bem mais difícil.
A porta do banco sempre trava comigo. Só melhora quando estou de vestido. Juro. Na escala das vulnerabilidades, vem o vestido, depois o texto. Ou talvez o texto antes do vestido. Depende. Mas, no fundo, deve ser porque é muito mais difícil esconder qualquer coisa num vestido. Qualquer coisa cortante, fatal. Fica tudo muito mais claro num vestido; a porta está aberta.
Pois bem: foi um dia de conquistas. De re-conquistas, contrastes, perdas. Por isso a avidez por papel: Eu não posso esquecer.
Dentre os motivos que me levam a escrever estão três: seduzir, lembrar e aprender a morrer. Dentre as pessoas que me seduzem estão três: as que também quero seduzir, as que quero lembrar, aquelas com quem quero morrer.
Hoje foi particular porque tomaram forma algumas pessoas das quais quero lembrar, mas não sei se quero mais morrer com elas. Encontrei inúmeras inspirações em potencial, mas envoltas agora num charme tão distante...
Inspiração é coisa de dentro. Isso tudo de "in" quase sempre pressupõe dentro, é certo. Inspiração distante é contradição. Inspiração é coisa de quem está "sendo agora".
Enquanto escovava os dentes, pensei em escrever uma carta ao meu tio avô. Não sei como, ele me pareceu tão presente. Mas que estúpido escrever a um morto! Talvez Por ele, tal qual sublinhou Deleuze, mas tê-lo como destino eu não sei.
Curioso ter lembrado dele. Foi a primeira morte que vi mais perto, um soco na garganta, mas uma partida que não chorei.
Minha amiga vai morar em Lisboa quarta-feira. Disse tchau a ela hoje, até breve, e foi tão estranho que bebi vodka. Dei um abraço quente, e senti um aperto no peito. No fundo, me encanta essa morte consentida, essa vontade de mudança, essa coragem. Não cabe o choro: ela vai casar na terra do bacalhau, mal cabe em si.
O Rio continua lindo, mas meu inferno astral começou com três prédios caindo. Bebemos cerveja no trabalho, como quem esquece. Não deu. A madrugada avança, a vida diz que qualquer coisa pode desabar a qualquer hora. Agora, sinto algumas pedras no meu sapato. O prédio aqui ainda está inteiro; é que me bateu forte uma saudade do amor.

2 comentários:

Bárbara Gontijo disse...

AMEI esse. De verdade.

Karine Reis disse...

belissimo, como sempre. Beijo, sua profunda ! rs