quinta-feira, 24 de fevereiro de 2011

Do gosto e da língua

Nunca gostou de pontos. Nem quando esboçou seus primeiros poemas, tampouco quando caiu de bicicleta naquela tarde cinza.
"O ponto é a menor parte da reta", aprendeu na escola. O desgosto foi maior ainda: nunca foi reta. Nunca nem soube desenhar uma reta, pra falar a verdade. Gostava das curvas, ouvia com prazer Elis cantar Roberto, na estrada de Santos. Admirava o desenho dos corpos - arredondados, fartos, ou, por vezes, como violões, a desfilar em orquestra - gostava do balanço dos andares, do rebolado, que circula o ar que amacia.
Quando começou a frequentar as aulas de inglês, descobriu que "retos" também eram os regimes ditatoriais. Nunca gostou de regime. Desde a infância, acostumou-se a comer sem pudores nem vírgulas.

Nunca gostou de pontos.

Nem quando o vazio pediu por reticências, tampouco quando algum fim se aproximava. Na escola, construia períodos longos, típicos do gênero narrativo, evitando a todo o custo a triste chegada daquele maldito. Sofreu com a laconicidade das dissertações, no começo. Por outro lado, sempre gostou dos inícios! Porque o começo é curvilíneo e ela gosta das curvas. É uma daquelas descidas, nas quais o carro acelera e faz frio na barriga.
Nunca gostou de frio. "Frio só é bom no início", ela dizia.
E sempre gostou de dizer. Como falava! Amadureceu aprendendo a cultivar o silêncio, de tempo em tempo.
Nunca gostou do tempo. Não conseguia desvincular dele a imagem de Cronos, que até os próprios filhos engoliu. A cada ruga, sentia mais próxima a saliva do Grande. Não conseguia abstrair, beijar o tempo, sentir prazer em ser engolida. Era uma cabeça dura.
Certa vez, quando repetia para um grupos de amigos a velha metáfora do comedor de criancinhas, responderam: "que delícia deve ser a língua de Cronos, com todo o tempo do mundo". Piada safada. É, ela gosta disso.
Seus gostos azedam ou adoçam, a cada aniversário. E, a cada ano, ao menos um ponto é necessário: aquele que ajuda a compor a reta que deságua na garganta de Cronos. Mas, no meio dos dentes afiados do tempo, há uma língua sem hora.
Aproveitemos!

3 comentários:

Thaís disse...

Gosto mais de vírgulas do que de pontos, principalmente os finais. No entanto, algumas coisas precisam de pontos finais para que outras melhores tenham início...

Bia Petri disse...

Gostei muito!

Anônimo disse...

gostei muito do fluxo de sentimentos e vibrações!
"que delicia a lingua de Cronos!"

Duda O.