Contos de fodas
sábado, 6 de novembro de 2021
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eu quero o poema que está
desenganado à própria sorte
um poema com quê de humano
um poema de vidro
tão frágil quanto tão forte
de verso que carregue a morte
a cada passo
em cada pé
ao pé do ouvido
eu quero o poema que guarda no ventre
a rima derradeira
gerada e parida em local ainda não sabido
eu quero o poema que debruça na beira
o verso que não sabe quando já terá
morrido
eu quero o poema
que carrega o avesso na barriga
o verso que traz em si o seu desconhecido
quero do poema
até o último sustenido
o verso mais íntimo do fim
mas que do fim não sabe nada
eu quero o descaminho da estrada
o último suspiro
o parto e a partida
a veia incerta
a perna aberta
a ocitocina
eu quero carregar no colo o filho
de um poema que termina
quinta-feira, 6 de dezembro de 2018
domingo, 3 de maio de 2015
3 de maio
Então é disso que se trata, enterrar todos os dias os livros que ficaram esquecidos na estante, o cheiro do perfume e todos os vermelhos. É o que parece, enterrar todos os dias aquilo que já se esqueceu. Então é disso que se trata a vida?; esquecer. E cruzar esquinas que põem a faca nos peitos do mundo e te assaltam as memórias. É disso que as esquinas se alimentam, e por onde as ruas gozam secretamente. As praças públicas, os mirantes, não é disso que eles vivem?, de dizer que a vida é lembrar. É disso que se trata, então?; estrangular o tempo e dar um nó, até que seja impossível saber se algum dia houve um passado, se não nascemos todos agora, se você amou inteiro. Até que maio seja mais um mês, até que "feliz aniversário" seja um dialeto de uma tribo africana pouco conhecida. Até que teu cheiro seja água engarrafada, e tua saudade uma dor de estômago qualquer. Até que meu desejo seja fome, e todas as lágrimas, antiséptico para os olhos. Morrer aquele tempo, para que ele não nos morra. É disso que se trata: cultivar as flores. Enterrar a cada dia, novamente, os nossos mortos.
quinta-feira, 17 de julho de 2014
Inverno
vai, verão
parte de vez
queima a última vela
parte a ultima veia
que nos rega os vasos
nosso pulso não planta mais nada
adeus
ao lado azul da chama que
antes era
parte mais quente desse corpo que
não queima
morre, verão
mas meu sangue
de barata
ainda corre
e os dias de sol não seriam nada
sem os girassóis
terça-feira, 24 de junho de 2014
Agradecimentos
Boa noite. Era 30 de dezembro de 2013, eu estava em outro continente e a mulher que eu amo viajava de Niterói, no Rio de Janeiro, para a Região dos Lagos. Do ônibus, me enviou uma mensagem esboçando versos sobre nós a partir do que via quando olhava pela janela. Não lembro ao certo o que dizia, porque o que mais me tocou foi que visse algo além da estrada. Foi a partir disso que escrevi o poema que está nessa Antologia. Foi pra ela, e ela nem sabe o quanto foi. Parece que foi ontem, o tempo não espera. Não se pode agradecer a uma inspiração, M., mas ao olhar. Nem deus nem o diabo; agradeço aos olhares do amor, verdadeiros responsáveis por qualquer antologia.
Quando
Ana Cristina César
Quando entre nós só havia
uma carta certa
a correspondência
completa
o trem os trilhos
a janela aberta
uma certa paisagem
sem pedras ou
sobressaltos
meu salto alto
em equilíbrio
o copo d’água
a espera do café
Eu
Travelling
Por Ana Cristina César
Tarde da noite recoloco a casa toda em seu lugar.
Guardo os papéis todos que sobraram.
Confirmo para mim a solidez dos cadeados.
Nunca mais te disse uma palavra.
Do alto da serra de Petrópolis,
com um chapéu de ponta e um regador,
Elizabeth reconfirmava, “Perder
é mais fácil que se pensa”.
Rasgo os papéis todos que sobraram.
“Os seus olhos pecam, mas seu corpo
não”,
dizia o tradutor preciso, simultâneo,
e suas mãos é que tremiam. ‘É perigoso”,
ria Carolina perita no papel Kodak.
A câmera em rasante viajava.
A voz em off nas montanhas, inextinguível
fogo domado da paixão, a voz
do espelho dos meus olhos,
negando-se a todas as viagens,
e a voz rascante da velocidade,
de todas três bebi um pouco.
Ana Cristina Cesar
(1952-1983)
Marcadores:
combo da despedida,
eu em outros,
outras mãos
Uma arte
Uma Arte
Por Elizabeth Bishop
A arte de perder não é nenhum mistério
tantas coisas contém em si o acidente
de perdê-las, que perder não é nada sério.
Perca um pouco a cada dia. Aceite austero,
a chave perdida, a hora gasta bestamente.
A arte de perder não é nenhum mistério.
Depois perca mais rápido, com mais critério:
lugares, nomes, a escala subseqüente
da viagem não feita. Nada disso é sério.
Perdi o relógio de mamãe. Ah! E nem quero
lembrar a perda de três casas excelentes.
A arte de perder não é nenhum mistério.
Perdi duas cidades lindas. Um império
que era meu, dois rios, e mais um continente.
Tenho saudade deles. Mas não é nada sério.
Mesmo perder você ( a voz, o ar etéreo, que eu amo)
não muda nada. Pois é evidente
que a arte de perder não chega a ser um mistério
por muito que pareça (escreve) muito sério.
(Elizabeth Bishop; tradução de Paulo Henriques Brito)
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